Interioridade

Durante décadas, o modelo de desenvolvimento português tem concentrado população, investimento e serviços nas faixas junto ao mar, deixando vastas zonas do país sujeitas a uma lenta erosão, demográfica e funcional.

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  • 13:11 | Segunda-feira, 01 de Dezembro de 2025
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A interioridade é um desafio que atravessa fronteiras e que em Portugal assume contornos particularmente densos. Falo aqui de interioridade não como um conceito geográfico, mas como uma condição, um peso social e simbólico marcado por distâncias — físicas, económicas e políticas. E essas distâncias aprofundam as desigualdades estruturais que existem em relação às zonas costeiras neste nosso retângulo. Durante décadas, o modelo de desenvolvimento português tem concentrado população, investimento e serviços nas faixas junto ao mar, deixando vastas zonas do país sujeitas a uma lenta erosão, demográfica e funcional.

Se olharmos para o vizinho ibérico percebemos que, também aí, existe um acentuado despovoamento e declínio rural. Esses não foram acontecimentos naturais, mas sim o resultado de anos de políticas públicas moldadas por uma lógica urbana. Assim, em ambos os países, o desafio da coesão territorial tornou-se uma zona de combate: ou se reequilibra o território, ou a sustentabilidade social fica em causa.

O ponto de partida é, assim, semelhante, já que tanto Espanha, como Portugal, têm de conviver com espaços que pulsam a duas velocidades. Nós temos uma faixa litoral densamente povoada, com dinamismo económico e serviços diversificados, e um interior marcado por uma constante perda populacional, envelhecimento e fragilidade económica. Eles têm um fenómeno denominado por España vaciada — expressão que busca sintetizar a desertificação humana das suas vastas regiões rurais.

O despovoamento, transversal aos dois países, é acompanhado de um conjunto de círculos viciosos. A saída dos jovens agrava o envelhecimento, a quebra demográfica fragiliza os serviços públicos, a ausência de oportunidades de emprego desincentiva a fixação de famílias e a escassez de população inviabiliza a existência de economias de escala. O resultado são territórios onde os custos de manutenção de escolas, hospitais, centros de saúde, ou transportes, são elevados, pois a procura é baixa. O modelo de crescimento centrado no litoral acentuou o desequilíbrio no investimento público, e privado, reforçando-se a perceção de que o Interior fica longe demais — não apenas em quilómetros, mas em oportunidades.


Contudo, a interioridade não é, obrigatoriamente, um sinónimo de estagnação. É, pelo contrário, um território de oportunidades, que questionam o paradigma dominante e obrigam à reflexão. Precisamente por isso, foram formuladas estratégias para enfrentar o desafio demográfico e territorial.

No caso espanhol é grande a amplitude de respostas: desde a criação do Comissário do Governo para o Desafio Demográfico, a um Plano de 130 Medidas especificamente desenhadas para o efeito, passando por uma Estratégia Nacional para a Equidade Territorial, foi lançada uma séria tentativa de colocar a questão em todas as políticas públicas — desde a conectividade digital à sustentabilidade agrícola.

Portugal, embora mais contido, seguiu caminhos semelhantes. Nos últimos anos o governo português lançou o Programa de Valorização do Interior, o Plano Nacional para a Coesão Territorial, e vários instrumentos regionais de incentivo ao investimento, tentando fixar empresas e população. A lógica é convergente com a espanhola: reconhecer que o despovoamento é um fenómeno sistémico e que exige coordenação interministerial, simplificação administrativa e discriminação positiva a favor dos territórios de baixa densidade.

A execução, essa, continua a ser o elo mais fraco. Persistem entraves burocráticos e uma centralização excessiva de decisões em Lisboa e Madrid. A maioria das medidas chega tardiamente às autarquias e acabam por não mobilizar as comunidades locais.

Apesar do problema, há sinais de inflexão. A pandemia veio revelar a viabilidade do teletrabalho e reacendeu, por isso, o interesse por estilos de vida menos urbanos. Alguns municípios do interior registaram aumento temporário de residentes e novas empresas digitais começaram a explorar localizações fora dos grandes centros.

Espanha percebeu a oportunidade, promovendo o plano “País dos 30 Minutos”, que visa garantir acesso a serviços básicos a menos de meia hora de qualquer ponto do território. A medida combina conectividade, mobilidade e coesão social. Portugal poderia, e deveria, seguir um modelo equivalente: uma rede mínima de proximidade — em saúde, educação, cultura e transportes — que procure igualdade de cidadania independentemente do código postal.

A transição digital e ecológica é capaz de abrir, igualmente, novas perspetivas. As zonas de baixa densidade têm espaço, sol, vento e património — recursos estratégicos num contexto de transição energética. Nesse sentido a interioridade pode ser reposicionada, não como um obstáculo, mas como uma vantagem competitiva num país que procura equilibrar crescimento e sustentabilidade.

Em termos políticos podem delinear-se alguns princípios orientadores:

Descentralização efetiva, com o reforço de competências e meios financeiros das autarquias e comunidades intermunicipais, permitindo que o planeamento territorial seja feito de baixo para cima, com a participação dos cidadãos e flexibilidade local.

Discriminação positiva, com a criação de regimes fiscais e regulatórios mais favoráveis ao investimento e à habitação no interior, numa ótica de compensação de custos de contexto.

Conectividade integral, com a garantia de cobertura digital e transportes regulares em todo o território composto por zonas de menor densidade.

Economia de proximidade, fomentando cadeias curtas de produção e consumo, pela valorização do que é local e sustentável.

Aposta nos serviços públicos essenciais, mantendo escolas, hospitais, centros de saúde e equipamentos culturais, ainda que economicamente menos rentáveis, como elementos de coesão social.

O desafio da interioridade é, em última análise, um desafio de justiça territorial e de futuro comum. As políticas públicas, da mesma forma que criaram o problema, podem também inverter essas dinâmicas, caso sejam transversais, participadas e sustentadas no tempo. Nesse âmbito, tanto Portugal, como Espanha, já reconheceram que o despovoamento não é apenas um problema demográfico, mas um sintoma de um modelo de desenvolvimento desigual.

A resposta não passa por replicar o litoral no interior, mas em valorizar as especificidades que distinguem cada território — a paisagem, o silêncio, a escala humana, a memória e a inovação. A interioridade pode ser, assim, a zona de fronteira onde o país se reencontra consigo mesmo: menos um espaço vazio e mais um laboratório vivo, de futuro.

 

 

Marco Augusto Girão

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