Durante anos, a doutora Sílvia especializou-se em analisar órgãos — não apenas os do corpo humano, como seria de esperar de uma radiologista, mas sobretudo os órgãos de comunicação social, onde realizava verdadeiras tomografias morais, à procura dos focos inflamados da hipocrisia e dos vírus da desinformação que infestam o discurso público pelos membros humildes da sala de espera…
Na sua clínica mediática, as consultas não se limitavam a diagnosticar ossos partidos ou tecidos inflamados. As suas “imagens” captavam os contrastes da sociedade podre, criada pelos anónimos e indefesos, na sua perspectiva, iluminando com raios-X a verdade oculta sob a pele fina da retórica política. O seu bisturi? Uma ironia afiada e uma voz doce que cortava sem anestesia os pobres coitados que nem isentos estavam de taxas moderadoras.
As suas consultas eram transmitidas em podcasts, esses sim, com moderadoras influentes, passando por canais e redes, sempre de forma muito católica, onde as doses de sarcasmo se misturavam com gargalhadas enlatadas. Ironicamente, tudo era patrocinado pela onda radiologista da fé e quem se queixava era logo taxado de ser paciente impaciente, incapaz de tolerar a liberdade de expressão, ou simplesmente sensível demais para o “humor”.
Na sua cabeça, a ideia de ser chamada a depor por causa de uma brincadeira parecia um verdadeiro choque anafilático à liberdade artística. Ir ao tribunal por fazer rir? Não bastavam as pressões sociais? Agora, parece que a comédia entrou em estado crítico. O momento tornou-se para aquela elite, a seguir à revolução dos cravos, o momento mais crucial da História da democracia portuguesa…jamais alguém em Portugal poderia ter a ousadia de se meter com os “capitães da saúde da democracia”…Embora Sílvia soubesse que era só especialista em radiologia e que não poderia ser equiparada a outros “médicos” de medicina geral, mais completos na sua formação… ela sabia que tinha que fazer algo para se distinguir, nem que fosse à custa de outros mais fracos e sem opinião no espaço público…
Na véspera da audiência, a doutora organizou um almoço com amigos influentes do hospital — um deles, muito próximo da Direção, verdadeiro órgão executivo do poder, convidava jornalistas ao seu consultório em horário nobre, de forma a eles não atenderem eventuais vírus do sistema. A rede de amigos seria a salvação do hospital, um dia… “O tribunal que espere”, parecia dizer, como quem marca uma consulta e depois a desmarca sem motivo aparente. O chef do restaurante, ex-assessor do Presidente, brindou à liberdade perante a “bolha” mediática. Um brinde sem prescrição…médica, mas com muita gravidade.
No dia do julgamento, a doutora compareceu, mas com a frieza típica de quem aguarda uma análise sanguínea, cruzou os braços como se esperasse uma pressão arterial acima do normal. Quando a juíza entrou, suspirou como quem esqueceu o talão da farmácia. O seu olhar traduzia um único pensamento: “Estarmos a discutir a minha arte médica, que é sagrada desde o grego Hipócrates?
“Afinal nada é mais importante do que a saúde e como se atrevem a pô-la em tribunal a minha classe? Quem salva vidas todos os dias desde o império egípcio…quem está lá sempre que é necessária para salvação do povo?”
A radiologista Sílvia não sabia que era necessária ser julgada. E não pelo caso. Mas pelo símbolo.
Porque naquele espaço não estava apenas uma médica. Estava o país, feito de cidadãos pacientes e pacientes cidadãos. Estava a ideia de que há quem goze de imunidade — uma elite simpática, bem-falante, protegida pelo riso e pelos jornalistas embora nunca se considerem — que parece ter um atestado para não cumprir as mesmas regras dos restantes.
O tribunal não era um programa de televisão, não tinha apresentadores, nem platéia para aplaudir. A juíza não lhe deu “boas-vindas”, nem agradeceu o tempo concedido. Pediu respostas, sem edição, sem pausas comerciais.
Foi aí que a doutora percebeu que, naquele tribunal, o tempo não se dobra à fama. Que a Justiça — ao contrário da rádio — não tem audiência a ouvir, tem sim, audiência para ouvir todos os intervenientes e com memória.
E foi também nesse momento que se revelou a essência da sua postura: forte com os fracos, fraca com os fortes. Uma radiologista de bisturi corajoso quando o paciente está indefeso — mas hesitante quando os poderosos são chamados ao exame.
Mas ainda hoje, os seus defensores questionam: “Por que tanto drama? Se outros também faltaram, por que é escândalo com ela?”
A resposta está na dose de respeito que foi recusada e que continua, mesmo com a audiência terminada, a zombar dos protagonistas do processo, no âmbito das suas declarações.
A doutora não faltou ao tribunal. Faltou-lhe ao protocolo, à solenidade, à própria essência da autoridade.
Quanto ao amigo da doutora, também testemunha arrolada, que preferiu não se apresentar? A sua ausência foi tratada com uma complacência sintomática, como se o tribunal fosse um balcão self-service, onde se serve apenas o que interessa e se ignora o resto. Um verdadeiro foco de desigualdade perante o dever cívico…
Quem entra na Justiça com o telemóvel na mão e uma metáfora na boca dizendo qualquer coisa como “é só um almoço!” — não percebe que, para quem vive do outro lado das suas piadas, o que está em causa nunca foi digestivo.
Há quem defenda que o tribunal deve ser magnânimo, que deve ignorar provocações, porque o silêncio é nobre.
Mas, por vezes, até a balança precisa de bater com força na mesa. Para lembrar que há coisas que não se relativizam. Que nem tudo é palco. Que a toga não se senta para aplaudir.
E quando o respeito é substituído por piadas na justiça, o riso deixa de ser liberdade — e passa a ser prepotência.
Este caso é mais do que uma simples audiência: é o retrato da radiologista Sílvia que confundiu a justiça com um tribunal self-service — onde se escolhe quando comparecer, o que dizer e a quem deve ser concedida indulgência.
Um aviso para todos nós, de que a justiça só funciona quando se deixa de brincar com ela.
(DR)
Paulo Freitas do Amaral
Professor e Historiador