Ler nas entrelinhas… Aquilino e o Senhor T.H.F.

Assim sendo, muito pesquisei nos plurais contextos epocais, por literatos, críticos, políticos, tertulianos e demais artistas em geral, portadores das enigmáticas iniciais T.H.F. Creio hoje que o próprio Aquilino também o terá feito… A minha investigação foi em vão. Ninguém assim chamado, naquela sincronia de transição dos anos 30 para os 40, me surgiu. Perfeito.

  • 10:42 | Terça-feira, 10 de Maio de 2022
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Aquilino tinha na escrita o alfa e ómega de sua existência. Também no seu amor à liberdade e na indómita forma de ser coerente com os seus nunca abandonados princípios. Destes ingredientes emerge a dupla coesão de uma obra e de uma vida.

Independentemente da vasta obra literária que o consagrou, a escrita presentificou-se, também, na sua quotidiana safra, por jornais e revistas, nacionais e internacionais.

Rara é a sua obra que não inclua um prefácio, uma advertência, um prólogo, um preâmbulo. Em algumas delas encontramos mesmo um pós-facio. A grande maioria, salvo no primicial “Jardim das Tormentas” sob égide e lavrado por Carlos Malheiro Dias, servia para a outorga de uma merecida homenagem aos grandes Companheiros que dessa forma quis homenagear. E foram muitos. Mais próximos do nosso território temos, por exemplo, Cristovão Moreira de Figueiredo (avô do saudoso arquitecto Henrique Torres), Arnaldo Malho, o Mestre do Ferro, Henrique Monteiro, dos Alhais, Gomes Mota, do Freixinho, Abel Manta, o pintor de Gouveia…

Também Aquilino foi prefaciador de obras várias, um agrado feito, mormente de todos quantos a ele recorriam para, com a sua palavra escrita, granjearem o atestado certificado de “distinção”.


Contudo, no largo âmbito de todos estes escritos, um houve que sempre me causou alguma estranheza, não pelo seu “límpido” conteúdo, sim pelo destinatário a quem era dedicado/dirigido.

Presentifica-se no Preâmbulo, inusitadamente longo de 12 páginas e dirigido “Ao senhor T.H.F.”… em “O servo de Deus e A casa roubada” – as duas novelas rematadas em sua casa, na Cruz Quebrada, na Primavera de 1941.

A imediata dúvida, não descortinável texto afora, é a identidade desta pessoa, pelas iniciais ali chamado. A seguinte é o porquê de tal semianonimato. A final prende-se com a mensagem patente, que se de uma transparência inequívoca, abarca um vasto leque de destinatários.

Assim sendo, muito pesquisei nos plurais contextos epocais, por literatos, críticos, políticos, tertulianos e demais artistas em geral, portadores das enigmáticas iniciais T.H.F. Creio hoje que o próprio Aquilino também o terá feito… A minha investigação foi em vão. Ninguém assim chamado, naquela sincronia de transição dos anos 30 para os 40, me surgiu. Perfeito.

Muitos anos volvidos tive o superior privilégio de me relacionar com o Senhor Engenheiro Aquilino Ribeiro Machado, desde inícios de 2008 até seu passamento, em Outubro de 2012.

Numa dessas ocasiões, e no decurso de um longo e convivial momento inesgotável de desfiar de vívidas memórias, ocorreu-me perguntar-lhe:

— Senhor Engenheiro, quem foi afinal o T.H.F. do Preâmbulo de “O servo de Deus e A casa roubada”?
Olhando-me com o seu olhar límpido e irónico, sorriu e respondeu-me:
— Paulo, também eu um dia tive essa dúvida e sobre isso questionei meu pai. E sabe o que me respondeu, sem delongas nem acrescentos? O T.H.F é o T.H.F. E pronto!

Ou seja, Aquilino criou um personagem fictício para lhe consagrar 12 longas páginas. Ou talvez não… O T.H.F. que a ninguém correspondia era um libelo fustigador contra os críticos “psicologistas” de um IIº Modernismo da Presença – que aliás ele também integrou a seu modo livre de estéticas e/ou modismos – que o criticavam, mas fundamentalmente contra um Futurismo “hoje a apodrecer pelos esconsos dos coleccionadores e as quitandas dos ferros-velhos.”, nas suas próprias palavras.

Esta estratégia de ataque diz muito sobre a personalidade de Aquilino que a ninguém deixava sem resposta, nunca virando costas a reptos ou desafios.

A grandeza deste Preâmbulo/Prefácio é inquestionável porque veicula, num diálogo fantasma, muitas dos pontos de vista estéticos do Escritor, mas também o enfado que os detractores lhe causavam e o modo como lhes respondia, recorrendo até a estratagemas deste tipo ficcional, presciente da sua perdurabilidade, décadas passadas, muito em contraponto da efemeridade das páginas de revista ou jornal.

Por tal, e correndo mesmo o risco de sermos exaustivos, deixamos aqui transcrito na íntegra grafia da época, esta peça tão saborosa de arremesso às “capelas”…

 

 

“Ao senhor T.H.F.

Quando por um dia de chuva desta desastrada primavera, faltando-me um parceiro para o bridge, condescendi em lhe ler as novelas que aí vão, disparou-me depois dos elogios da lei:

— Sabe o que me assombra na sua lida de escritor? Mais que a tenacidade, uma virtude tão pouco lusitana que me leva a crer que o amigo está de faxina às ordens do Espírito Santo, é a serena consciência com que essas páginas são escritas, ao passo que tudo à volta e pelo mundo é estrondo e confusão. A caranguejola que nos transporta vai rebolando pela mais infernal das ribanceiras. Como pode o homem de letras segurar a pena na mão com a firmeza requerida? Como pode concentrar o entendimento em temas tão à margem do leit-motiv dominante? Procuro uma imagem e lembro-me dos tamborileiros, com que é de regra a epopeia ilustrar as batalhas verdadeiramente magníficas, os quais, uma vez rôtas as alas, derrubado o último quadrado, continuam imperturbavelmente a rufar a caixa. Só por isso eu lhe tiraria o chapéu.

Observei ao discreteador que não fazia literatura no espaço e que as minhas personagens calçadas com borzeguim ou de tamancos, vestindo albornoz ou capucha, em paz ou na guerra, eram da primeira plana do género humano e tão parecidas entre si como um sapo esborrachado com outro sapo esborrachado.

— Não há dúvida, não há dúvida – retrucou-me – êsse seu anacoreta, insculpido no cerne rajado da grande árvore cristã, simboliza com felicidade os anseios das almas perante os eternais problemas. No seu substrato como no seu recorte tudo é espiritual, delicadamente espiritual e nada voltaireano, conquanto represente uma atitude perante a vida, e ainda bem. E quanto a pescar pobres diabos e patifes nas enxurradas da sociedade, regida por leis que andam desde longe, ainda antes de Moisés, ao despique qual delas há-de com mais violência obrigar o homem a ser feliz, muito menos se lhe pode negar actualidade. A segunda novela está até vazada em moldes novos, em relação à sua maneira, se atendermos ao relevo cinemático com que, salvo duas ou três páginas, a acção prevalece a quaisquer outros valores literários.

— Não tem mais nada a dizer-me em matéria de crítica?

— Tenho; gostaria de o ver tentar… como hei-de dizer? Gostaria de o ver aviar uma receita que passa pela última novidade da tendinha literária. Receita não é bem o têrmo. Para tanto, falta-lhe a fórmula; não promana de um corpo de doutrina definido; emprega ingredientes ad hoc. Dêmos de barato que se trata da nebulosa duma possível escola em formação quanto ao romance e à novela e que pretende acima de tudo interpretar os refolhos oceânicos do homem e a simultaneidade ou quási simultaneidade das suas reações de consciência. Mesmo lá fora, onde antes da guerra teve os seus cultores, semelhante experiência, se assim se lhe pode chamar, não transitou ainda, que eu saiba, da fase esotérica. Claro que entre nós um ou outro catecúmeno, que se deixou cometer, serve-se dela como o preto que não soubesse mecânica nem nunca tivesse aprendido condução se poderia utilizar do automóvel atrelando-lhe um jumento. Era para aí, para esses horizontes novos, vagos, imprecisos, que eu gostaria de lhe ver deitar os olhos…

— Dê-me licença que lhe signifique quanto é até certo ponto indiscreto dizer ao escritor que já vai longe no seu caminho, obedecendo a regras que nos permitem fixar a sua trajectória, que seria agradável ou mesmo curioso vê-lo inflectir nesta ou naquela direcção. O escritor que se preza continua-se; continuar-se é acentuar a sua personalidade. As escolas passam, o artista, quando o é com dignidade, fica. Encarecia Sterne: Não se deixem embaraçar com os dogmas das escolas. Realmente o escritor que se deixa permeabilizar por novos postulados ou eventuais influências, implicitamente denota falta de carácter ou tacanhez mental, que vem dar ao mesmo. Antes de mais nada, o que em bom direito se deve exigir ao artista é que seja êle; êle pelos processos, pelo contexto, pela visão, pela forma. Acima de tudo êle. A falta de ser êle com suficiência e serenidade é pecado que nenhuma escola, nenhuma doutrina, nem Cristo, nem Minerva podem perdoar. Conta-se que na Grécia o mansíssimo Platão mandava um ilota pôr fora do jardim de Academus todos os que lhe cheirassem a macaqueadores, plagiários, contrafactores do espírito alheio. Conexamente o crítico procurará, antes de mais nada, entrever o escritor na estrutura própria. Divisá-lo através de esmeralda particular, ainda do mais pintado, só pode ser admissível a título subsidiário. Que seria Gôngora através de Campoamor? Vitor Hugo através de Valéry? Balzac através de Jules Renard? Herculano através de Eça? Anatole France chasqueava de Proust pela truculenta, labiríntica construtura, análise difusiva e pelo esforço que só o livro de ciência está autorizado a pedir ao leitor, e cabendo tal desdém nos direitos do seu principado, anterior no tempo, adverte-nos, quando menos, do absurdo que seria insinuar ao autor da Thäis que escrevesse à maneira do autor Du côté de chez Swann.

Corre para aí uma palavra, a qual embora tão usada como os patacos antigos a poder de batida no balcão dos algibebes e judiarias intelectuais, é tida como constituindo o supra-summum da arte literária: psicologia; A menina que se arrufa com o namorado escreve: não conheces a minha psicologia; o crítico diz do livro do compadre: soberbo de psicologia; o zoilo do café acoima o autor que lhe não ofereceu a brochura ou não lhe dá cavaco: as personagens deste tipo carecem de psicologia. Qualquer pontífice máximo, todos o são desde que disponham dum palmo de papel para borrar, proclamará cavalgando a luneta: Vejamos a psicologia! Vocábulo de algibeira, é chamado a definir o realizador de negócios com lume no olho e o engraxador que pelo sentido táctil, aplicado às várias espécies de cabedal, sabe segurar o freguês exigente ao lustro das botas.

Nesta maviosa terra em que, como diz o francês, não se distingue fagot de fagot, em que tanto se chama Almeida o senhor dos seis besantes de oiro como o negro fôrro, havia de distinguir-se o pechisbeque literário do oiro de bom quilate, deixando de outorgar psicologia à novela de estofo grosseiro e elementar, ao tremor de maleitas sentimentais ou simplesmente aos reflexos animalescos de qualquer matóide, à congeminação do primeiro tartaranha acorrentado de Prometeu à sua insignificância, ou miséria por desaforo do destino que deveria ter feito dele um janota ou ricaço?! A palavra impôs-se e não se admirem que gente, que tem tanto a peito apresentar certificado de anti-parôla, anti-bárbara, anti-imediata, de momento a momento, lhes pergunte por ela. E, paciência, que se tornou infusa como a luz divina.

Coadunava-se este modo de ser com o de meu confrade de bridge e conselheiro, ao que lhe ouvi, e o discurso tornou-se monocórdico.

Em verdade, abstraindo da elaboração léxica do vulgo, que só poderia coibir-se recorrendo a providências não menos rigorosas do que para o tifo exantemático, é incontestável que não há nada mais vicioso e abusivo do que o emprego, a cada pensamento, a cada sentença, a cada espirro, nos meios cultos e doutorais da palavra psicologia, erradamente, aliás, debaixo do aspecto filológico. Da mesma maneira que uma pessoa policiada não diz: lavei a cara; a cozinheira não anuncia: temperei a sopa; o homem higiénico não manifesta, nem mesmo a título confidencial: trago cuecas – não há necessidade que o escritor diga ou ao escritor se pergunte se tem psicologia na sua obra. Por isto: a psicologia ou melhor o psíquico em arte é o mesmo que o lavar a cara do homem policiado, o tempero na sopa de qualquer cozinheira, as cuecas do homem limpo. Numa palavra, é o básico; o sal; a substância inata. Agora, como se conhecem mil maneiras de temperar a panela, com presunto, com galinha, com unto, com azeite ou com Kubb, a questão da personalidade do escritor consiste na maneira de aviar a receita psicológica.

E quem diz personalidade diz sentido estético, poder de observação e justa filtragem do real e do falso. Que conta dá destes tópicos a disciplina nova ao esgaravatar no homem ou bicho humanizado a propósito de tudo e de nada, fazendo-lhe como Volta fez à rã, obrigando-o a reagir artificialmente, vasculhando-lhe no poço sem fundo do sub-consciente cuidados, penas, volições, que é de todo arbitrário supor ali, em suma pulsando a cada momento, frize-se bem, a teia emaranhada da sua psique? O ferreiro, quando malha o ferro, que minhocas de natureza ética ou política pode albergar no fundo do seu peito? Entrevisto nesse momento à luz da fisiologia, a sua alma é chão varrido. Sim, nesse momento, o ferreiro é máquina, admirável e exclusiva máquina, procedendo por automatismo. A mesmíssima coisa é o cavador agarrado à enxada, o chauffeur lançado a nove pela estrada de grande circulação, o soldado no combate, o anatómico à mesa das autópsias, numa palavra é assim todo e qualquer homem realizando acto que dimane antes de mais nada do saber mecânico ou do esforço muscular. É intuitivo que o racional não se apaga de todo, mas eclipsa-se, conservando-se respeito à função em estado de sopitamento, ou reverberando por intermitências. Que fulgure, o relâmpago carece de interesse descritivo. E tem de ser assim, em harmonia com a natureza que se acondicionou no homem e, uma vez à obra, se defende até à inibição de actividades parasitas. O órgão mobiliza os demais órgãos. O homem só é Proteu em estado de repouso. Portanto esse glosar do músculo quando o músculo está em exercício, esse vidairar do entendimento, do desejo ou até da vontade quando a criatura concentra os sentidos em determinada faina, é gongorismo psicológico puro.

Estou em julgar que não é menos aberrante o articulado quanto a estilo e forma literária e de todo facecioso o que em tal matéria se disse a meus respeito. Escrevi um livro, Terras do Demo, menos com o propósito de explorar o filão regional, curioso mas constritivo da personalidade, do que dar um tiro de pólvora seca à pardalada literária, que ao tempo, na peugada de Fialho, conspurcava de francesia o papel de impressão. Não se chegou a dar aos livros títulos mascavados de português e de outros idiomas? A epidemia abominável foi conjurada, mas eu quedei amarrado ao feito. Os Sainte-Beuves que riscaram o tratado de Tordesilhas da literatura nacional entenderam que eu me devia dar por contente ficando com o tojo, o labrego e a vária boiada rural. Respectivamente ao partido tomado, fizeram crer que o meu estilo era de caso fito provinciano, bárbaro, com o fartum do burel e o ranço de Fernão Lopes. E as boas almas fantasiavam-me à banca de romancista a aparar a pena de pato daquele candidíssimo cronista e pelas crestomatias à procura de frases de rabona e de polvilhos. É verdade!

Tudo isto era grotesco, estapafúrdio, duma pequenez de saguão, filho da desordem mental que frades e mestres causaram no cérbero do português. Com o rodar dos anos e prolongamento da carreira obnóxia, mudou de todo o tom do tintinábulo: ao presente sou um prosador trabalhado pela febre da perfeição externa, um Herédia que vendeu a alma ao demónio lúbrico do estilo, atento como uma vestal à pureza da forma e à linguagem vernácula e castiça, catando os argueiros da composição como as mães símias do Jardim Zoológico ao piolho dos macaquinhos. Coisa por maior! Decerto procurei melhorar o material das minhas construções e tenho por axioma que um desses materiais é a língua. Como hei-de eu expressar-me claro, descer aos recessos do pensamento, traduzir as cambiantes dum pensar, dar o pitoresco duma resposta se não possuo o instrumento próprio para traduzir tais subtilezas?! Para se ser bom carpinteiro antes de mais nada é preciso ter boa ferramenta. Tratei, pois, de me aperfeiçoar na arte de escrever. Fi-lo com lisura, honesta e devotadamente como João de Barros que, para firmar a mão, começou por escrever o Clarimundo. Ao contrário do cronista, os escrevinhadores de hoje começam por lançar aos quatro ventos da publicidade as suas cacaborradas de meninos prodígios. Mas sempre ouvi o conjuro daquele crítico, Philarète, se me não engano: Se descambares no precioso, maldita a hora em que pegaste da pena! Se sacrificas a verdade da expressão à beleza da forma que o teu espírito fique estéril como chão salgado!

Imagino que o primeiro tentame do escritor nato deva exercer-se no sentido de dominar a palavra, que é como a greda para o estatuário, e o pano para o alfaiate. E nesta ordem de ideias, a sua aspiração será que o estilo se possa comparar à água da rocha, cristalino, levemente cantante, mexido, animado do movimento estupendo que tem a linfa a correr, e que dê apetite bibendi, isto é, segure o leitor digno do nome. O informe na redacção pertence à idade pré-histórica. Em literatura o estilo é como álcool para os corpos embalsamados; conserva-a. Toda a literatura que resiste à corrosão do tempo deve-o ao estilo. Homero, Cícero, Shakespeare, Camões, Voltaire, Tolstoi foram grandes estilistas. Quere isto dizer que o estilo seja tudo em arte? De modo algum. Mas sem estilo nenhuma obra se salva.

Acresce que a nossa língua está tão pouco clarificada que apenas pensa com concisão e justeza quem escreve correctamente. Julgar que em nome duma postiça originalidade ou evidenciação do humano haja de se abolir a técnica é pueril. E fazer tábua rasa da experiência adquirida no domínio da expressão não pode deixar de representar um inútil, inglório e malogrado intento. A palavra é como o mármore na estátua; dar a essa matéria semblante de vida, curvas voluptuosas, sombras quentes, frémito, solidez, eis o difícil objectivo que se não alcança de golpe. Com verbo desordenado, segundo a flux apocalíptica da imaginação, só poderá obter-se uma turva e destrambelhada arte. Aqueles escritores, ainda, que parecem não cuidar do estilo como Romain Rolland, realizam o milagre da simplificação que permite não dar conta dele, mas que olhos em graça muito bem vêem e admiram.

Mas, entendamo-nos, simplificação não é pulverizar a frase, partindo-a em cibos como quem deita migalhas a pássaros; não é seccionar o conceito em orações breves como badaladas de sineta de um andador das almas; não é a secreçãozinha pressurosa e esguicho de gato. Semelhante croché denota constipação do cérbero ou asma espiritual e para esse morbo encontro aqui numa velha farmacopeia galénica a mezinha infalível, condimentada com unha de gram besta e caput mortuum, o que traduzido no receituário em dia só pode ser: essência de Vieira, flor de Camilo, aná, três onças de espírito de Eça.

De facto, apenas os primários tinham a frase curta, porque nas circunvoluções cranianas apenas lhes cabiam pensamentos acanhados. Compor literatura a semelhante compasso, com símile na demência precoce, em despeito de tais ou quais qualidades, seja embora poder de visão e intuição psíquica, é a mesma coisa que em música tocar piano com um dedo.

Para o europeu, produto duma demorada progressão espiritual através dos tempos, a palavra – que é mais que uma noção abstracta, e que associada com outras tem a vida repululante dum polipeiro – vai acompanhando o desdobre da ideia que, a não fixar-se em categoremas, se distribui em pernadas, ramos, folhas como as árvores. Um belo período de Bernardes, de Anatole France é complexo como uma catedral.

No domínio ainda das aberrações com alvará de correr, formulou-se a teoria de que é escrevendo mal que se atingem as altas regiões da arte. Foi sobre quejando princípio, com abolir o desenho e as proporções, que se edificou o futurismo, hoje a apodrecer pelos esconsos dos coleccionadores e as quitandas dos ferros-velhos. O cheiro de cadáver chega tarde à nossa jucunda terra, defendida a todo o longo da raia por renques dobrados de loureiros-rosa, que são a árvore de Apolo. O nosso meio físico tem o poder de conservar dislates deste jaez, grandes como orelhudíssimos onagros, nascidos do cálculo velhaco de atenuar a manqueira, própria pondo os imbecis a manquejar. Meço-lhe as proporções imaginando o que diria o marceneiro, meu vizinho, se lhe aconselhasse que para o aparelho duma tábua deveria preferir o raspador à garlopa.

Quanto aos juízos que pode merecer a minha obra à crítica anexa a tais parvidades, é-me totalmente indiferente dentro do plano objectivo. A obra de arte traz inerente à sua constituição o vírus mortal de que virá a combalir ou os fagócitos que lhe defenderão a vitalidade. É cedo para os gusanos experimentarem a mandíbula na pasta dos vinte e tantos livros que escrevi. De modo geral, quando se trata de autor vivo, está para nascer quem o há-de julgar com inteireza e são discernimento. A esse terrível tribunal o que importa é apresentar, antes de quaisquer outras virtudes, carácter. Por outros termos, originalidade. Já dizia Montaigne: para apreciar com lúcida consciência um escritor, tenha-se em linha de conta a sua originalidade. Deve ser, quanto a este quindim, a primeira pergunta que fazem no Vale de Josafat a todo o rabiscador. E com toda a razão. No mundo literário do estrangeiro, o grande Manitu da arte, de qualquer arte, não é outro senão este. Entre nós é-se pouco exigente em tal artigo. Porque abunda? Porque são aos cardumes os plagiários e tocadores de marimba e tacitamente está entendido que não se fala da corda em casa de enforcados? Soyez idéaliste, soyez realiste, mais avant tout soyez quelqu’un et soyez vous-même – exclama Cherbuliez. Sim, sejamos nós mesmos pela graça de Deus, como os monarcas.

Neste livro procurei ser isso, ser humano, ser verdadeiro, e mais procurei compô-lo com claridade, a claridade profunda do mar visto de alto, o mais alto possível do céu. Quanto a comparsaria e meio, a primeira novela não tem limites precisos no tempo e no espaço. Suponha-se transcorrendo nas idades afonsinas. A segunda revela até certo ponto um retorno aos primeiros amores. Mas nada de lôgros: ao regionalismo destas páginas falta muito para ser o regionalismo integral das Terras do Demo: Faltam-lhe as árvores, os pássaros, os penedos siderados pelos horizontes que decoram as minhas velhas paisagens rurais. A terra é nua, ascética, própria da imaginativa jansenista, cansada de contemplação.

A hora corre nada propícia para a arte que não se subordina. Os interesses materiais sobrepõem-se aos interesses do espírito com uma tirania nunca vista. Esperemos que o género humano se salve ainda desta feita do cataclismo por mastodontização. Esperemos, por outra, que o logos, que é a racionalidade, volte a pairar sobre o caos.

— Meu amigo, o senhor que é um dos raros viventes que mantem vivaz o culto da leitura, como outros do foot-ball ou da dança, que a instituiu em seu primeiro prazer, salvo o de dar dois tiros à perdiz e deitar a linha no rio, aqui lhe trago as novelas lidas num dia enfadonho de mormaceiro e que por isso mesmo nos arrastaram a longo e fastidioso debate.

                                                                                                                                  A.R.”

 

 

E assim se remata, recorrendo até Aquilino às suas iniciais A.R. para não agudizar a dissonância das do ficcionado interlocutor, o Senhor T.H.F.

O objectivo é triplamente cumprido. Neste quase longo monólogo – se lhe tirarmos o primicial repto – Aquilino expõe a sua “arte poética”, o seu “fazer”, o seu respeito pela inteireza e integridade da língua mãe, no “distinguir-se o pechisbeque literário do oiro de bom quilate”; expressa com toda a claridade a sua indómita liberdade às correntes estéticas e seus modismos de circunstância: ”As escolas passam, o artista, quando o é com dignidade, fica.”; manifesta seu desdém pela crítica subserviente que segue, na procissão, atrás do guarnecido pálio com o santo do dia.

E repudia ainda o “caos”, norteado pelos seus indómitos princípios e firme no seu esteio seguro, de torgas fundo alcançadas: “sou um prosador trabalhado pela febre da perfeição externa.” Algo a contrapor?

E, em boa verdade, hoje, mais de 75 anos volvidos sobre a luz destes escritos (e de tantos outros), à saciedade se comprova quão certo e presciente do caminho a trilhar estava o Escritor, que contrariamente a tantos, lhe viu recusado “o cheiro de cadáver” e o “apodrecer pelos esconsos dos coleccionadores e as quitandas dos ferros-velhos”, antes se impondo, nada apoucado com o tempo e suas anacronias em prevalecer com a vitalidade que estua e ressumbra, caudalosa, desde “O Jardim das Tormentas” (1913)…

 

Nota final: Seguimos a 1ª edição

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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