Beatriz Pinheiro – 150 anos (Viseu, 29-10-1871/ Lisboa, 14-10-1922)

O desfecho da revista Ave Azul não pôs um ponto final na colaboração de Beatriz Pinheiro com a imprensa do seu tempo, bem pelo contrário, publicando em periódicos como A Beira, Nova Aurora, Almanaque de Senhoras, A Crónica, Alma Feminina ou O Garcia de Resende. O mesmo não aconteceria com a sua permanência na cidade natal.

  • 9:35 | Sexta-feira, 29 de Outubro de 2021
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Nota: Este texto é baseado numa comunicação proferida no Colóquio”O feminino nos Arquivos”, realizado em Ponta Delgada, em Março de 2021. O texto da comunicação está publicado no volume das actas do colóquio, edição da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta delgada, 2021 e pode ser consultado on line do site Academia.edu.

 

Escrever sobre Beatriz Pinheiro – feminista, republicana, pacifista, escritora, professora, activista – é tirar da semi-obscuridade onde repousa a mulher que integrou o movimento do primeiro feminismo português, a pacifista que, desde a primeira hora, aderiu ao Movimento Pacifista, mas, paradoxalmente, a militante que defendeu a entrada de Portugal no cenário europeu da 1ª Guerra Mundial.


Escrever sobre Beatriz Pinheiro, ela que nunca precisou de se esconder sob pseudónimo para publicar os textos que produzia, é relembrar o papel que desempenhou, juntamente com seu marido, Carlos de Lemos, na direcção da revista Ave Azul, publicada em Viseu nos dois últimos anos do século XIX, bem como a sua produção de artigos sobre a questão da igualdade de género e da luta pela defesa dos direitos das mulheres à educação e ao trabalho remunerado.

Escrever sobre Beatriz Pinheiro é analisar criticamente os multifacetados textos que deu a lume. Neles perpassa a mulher atenta aos problemas do seu tempo, às alterações entretanto acontecidas, posicionando-se de acordo com o momento vivido e de acordo com as suas opções políticas. Neles perpassa a mulher que, sem rebuço, critica a sociedade em que vive, aproveitando para lançar propostas que potenciassem alterações.

Mas, escrever sobre Beatriz Pinheiro é também tentar refazer a sua história, dos dias de Viseu, onde nasceu e viveu até quase ao advento da República, ao quotidiano lisboeta onde viria a falecer.

 

Em finais do século XIX, “Viseu […] era uma cidade airosa e desenxovalhada [e] como capital de um distrito bastante vasto, tinha uma vida burocrática que excrescia para os botequins e confeiteiros”, assim escrevia Aquilino Ribeiro na sua obra autobiográfica Um escritor confessa-se. Muitos anos antes, num dos últimos capítulos de Andam faunos pelos Bosques, traçava um interessante retrato da cidade beirã, nomeadamente da Rua Direita, a artéria principal de então: “era um nunca acabar de gente: povo que mercava e povo que vendia, moças azougadas, as anquinhas a bater o sericoté, soldados do 14 […], figurões de bengala a chapéu de coco, anchos e dominiosos como senhores do mundo, cónegos, vigários, teólogos, estudantes e curas […]”. Foi então que nesta airosa cidade de província, capital de distrito, a 29 de Outubro de 1871, nascia na rua Nossa Senhora da Piedade, que desembocava na rua Direita, Beatriz Paes Pinheiro de Lemos, filha de um alentejano de Elvas, funcionário dos correios – telegrafista de 3ª classe -, Joaquim António Pinheiro e de Antónia da Conceição Pais, de Paços de Silgueiros. Apesar de, aos 5 anos, ter ficado órfã de pai, teve acesso a uma educação formal, frequentando, segundo as suas palavras, o ensino primário e liceal. O fim do liceu e, mais tarde, o diploma em Ciências e Letras conduziu-a à docência, primeiro no ensino primário e, mais tarde, no ensino liceal feminino. O gosto pela escrita levou-a, ainda estudante, a colaborar na revista académica Mocidade, criada pelo seu futuro marido, Carlos de Lemos, então aluno do Liceu de Viseu. Os dois fundaram, foram proprietários e dirigiram a revista Ave Azul, que se manteve activa durante dois anos: 1899-1900.

A Beatriz Pinheiro não faltava a veia artística: poetisa, prosadora, música – tocava primorosamente harpa -, actriz. Eram célebres os saraus literários em casa do casal Pinheiro-Lemos, frequentados pela intelectualidade do burgo beirão. Em 1906 estreou-se no teatro amador, participando em récitas promovidas pelo Grémio de Viseu e pelo Teatro Viriato. À artista somava-se a mulher feminista empenhada em causas sociais. Lutava pelo direito das mulheres ao trabalho remunerado, ao salário justo, à educação e ao ensino. Pinheiro foi particularmente activa na sua cidade natal ao defender uma educação feminina e laica. Como presidente da União das Senhoras Liberais de Viseu, fundou, em 1901, Escola Liberal de João de Deus, destinada à educação de raparigas pobres, encerrada em 1909, após sua partida. Dois anos antes, em 1907, foi a responsável pela introdução do projecto das Escolas Móveis pelo Método de João de Deus. Desde o primeiro momento esteve, de alma e coração, com a Liga Portuguesa da Paz, fundada em Lisboa a 18 de Maio de 1899, tornando-se na sua correspondente viseense. Pertenceu, ainda, ao Grupo Português de Estudos Femininos, à Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e à Associação de Propaganda Feminista. A 16 de Novembro de 1915, em Lisboa, foi iniciada na Loja maçónica «Fiat Lux». No ano seguinte, com o nome simbólico de «Clemence Roger», integrou o quadro da Loja Carolina Ângelo, que abandonou em Janeiro de 1920.

O desfecho da revista Ave Azul não pôs um ponto final na colaboração de Beatriz Pinheiro com a imprensa do seu tempo, bem pelo contrário, publicando em periódicos como A Beira, Nova Aurora, Almanaque de Senhoras, A Crónica, Alma Feminina ou O Garcia de Resende. O mesmo não aconteceria com a sua permanência na cidade natal. O ambiente adverso quanto à assumida militância republicana, a que se poderia somar o conservadorismo católico reinante na urbe, teria obrigado o casal Pinheiro-Lemos a trocar Viseu por outras paragens. A proclamação da República, a 5 de Outubro de 1910, encontra Beatriz Pinheiro em Lisboa, participando na campanha a favor da aprovação da Lei do divórcio ou na reivindicação do laicismo quer no ensino, quer na prática da enfermagem. Em 1911, como professora provisória, leccionava as disciplinas de Francês, Geografia e História no Liceu Feminino Maria Pia, onde, a 8 de Junho de 1916, proferia a conferência em defesa da participação de tropas portuguesas no cenário bélico europeu – A mulher portuguesa na guerra europeia. Três anos antes, em 1913, juntamente com Ana Augusta de Castilho, Ana de Castro Osório, Luthgarda de Caires, Joana de Almeida Nogueira e Maria Veleda, fez parte da comissão portuguesa presente no 7º Congresso Internacional «Women Suffrage Alliance», realizado em Budapeste.

Nas vésperas de completar 51 anos de idade, o coração falhou e Beatriz Pinheiro fechou os olhos para sempre. Era o dia 14 de Outubro de 1922. Na sua certidão de óbito consta unicamente que era doméstica de profissão e morrera sem deixar bens e filhos menores. Moradora no bairro da Sé, em Lisboa, Beatriz Pinheiro repousa numa campa desconhecida no Cemitério do Alto de São João, na capital portuguesa. Seis meses depois, a 26 de Abril de 1923, em sessão ordinária da Câmara Municipal de Viseu, a proposta do vereador Monteiro Júnior, que convidava “a Comissão Executiva a, na primeira oportunidade, dar a uma rua ou praça de Viseu, o nome D. Beatriz Pinheiro, em atenção às altas qualidades desta escritora e poetisa ilustre que foi desta cidade” era aprovada por unanimidade. Quase cem anos depois, por proposta do Bloco de Esquerda, a 29 de Junho de 2020, a Assembleia de Freguesia de Viseu, decidiu, outra vez por unanimidade, atribuir o nome «Beatriz Pinheiro» a um sombrio arruamento da cidade, torneando um bairro que recorda uma outra viseense, Maria do Céu Mendes.

 

Os anos viseenses de Beatriz Pinheiro estão insofismavelmente ligados à revista Ave Azul, com o primeiro número publicado a 15 de Janeiro de 1899, tendo como directores e proprietários o casal Beatriz Pinheiro e Carlos de Lemos, pseudónimo literário de António Cardoso de Lemos. Sem publicidade, suportada por assinaturas previamente recolhidas e, quiçá, pelos seus proprietários/directores, a revista destinava-se a um público específico, que pode ser identificado com a média e alta burguesia No primeiro editorial elencavam-se os motivos para a sua vinda a lume. Não para preencher lacunas, nem para dar à luz uma «nova teoria de arte», nem tão pouco com objectivos do lucro e de alguma «celebridade». “A Ave Azul é, pura e simplesmente, uma revista de arte e crítica: mais nada. Nas suas páginas se recolherão versos, quanto possamos, bons; prosas, quanto possamos, correctas”[1].

Nos dois anos de vigência da revista, Beatriz Pinheiro publicou nove contos e, num registo profundamente feminista, estatuto assumido e reivindicado pela autora, escreveu quatro editoriais, intitulados Chronica. Para além das Chronicas, dois outros textos, com a mesma denominação, A emancipação da mulher, não só demonstram à saciedade a pertença da sua autora ao primeiro feminismo português, como os artigos da Ave Azul podem ser considerados como as primeiras publicações feministas em Portugal. Não por acaso, Ana de Castro Osório, que em 1905 editou a obra Mulheres Portuguesas, para muitos o primeiro manifesto feminino português, teve um contacto próximo com a revista viseense, onde não só publicou como foi objecto de recensões críticas.

A militância feminista de Beatriz Pinheiro provocou violentas e venenosas reacções, com eco na imprensa da época, nomeadamente nos meios católicos onde pontificava o padre Sena de Freitas. Às suas críticas respondeu Carlos de Lemos em três longos e pertinazes artigos publicados também na Ave Azul, em que defendia o feminismo e o respeito pelos direitos das mulheres que, então, se começavam a desenhar.

De acordo com Martim de Gouveia e Sousa, a escrita literária de Beatriz Pinheiro, que nunca usou pseudónimos para assinar qualquer peça por si publicada, nem tão pouco se serviu do apelido do marido, inseria-se nas correntes do Decadentismo, do Simbolismo e do neo-romantismo. Se O Enjeitado, o primeiro conto publicado em Ave Azul, em nada remetia para o universo feminino, o mesmo não acontecerá com todos os outros em que as heroínas são as mulheres. A mulher que, sem se saber viúva, esperava pacientemente o regresso do marido emigrado no Brasil (A Espera); a Maria Corcunda, feia, desajeitada, a quem a deficiência notória remetera para o limbo da existência e do esquecimento (A Maria Corcunda); Josefa Maria, a bela camponesa beirã, cortejada por dois mocetões de posses, ensombrada pelo assassinato de um, contraía matrimónio com o outro, por sinal o matador. Mas a riqueza seria de pouca dura e sobre o casal pairaria a desgraça e a morte (O crime); a filha do mestre-escola seduzida, abandonada com um filho nos braços, ostracizada pela sociedade e infanticida (Infanticida); Margarida, a bela e jovem viúva de um marido a quem não teve tempo de amar (Duas almas); a menina do retrato morta de amor e saudade (Através dos tempos); a órfã e a paixão proibida pelo filho da sua protectora (Obstáculo). Em suma: mulheres marcadas pelo abandono, pela tragédia e pela morte – a sua e dos que lhes eram muito próximos. Mulheres disruptivas, numa inconsciente rota de colisão com a norma oitocentista alicerçada no casamento e na maternidade. Mulheres abnegadas, mulheres sofredoras, mulheres que se reinventavam na solidão. Mulheres que se deixam morrer de saudade e de dor. Mulheres que provocam a morte.

As personagens femininas de Beatriz Pinheiro estão, quase todas, envoltas numa teia de fatalidades, que não podem, não querem ou não conseguem romper. De todas, Maria Corcunda representa, a meu ver, o paradigma da fuga à norma, a síntese em Pinheiro das características da mulher rejeitada pela sociedade burguesa de finais de oitocentos: afastamento dos cânones de beleza da época; auto subsistência; emancipação da tutela patriarcal, seja do pai, do marido ou de um irmão; exercício da maternidade por uma adopção informal.

Em forma de missiva e na primeira pessoa, Pinheiro utiliza o texto Cartas Abertas como um alerta para uma visão romanceada do casamento. Fernanda, narrador autodiegético, em carta dirigida a Maria, sua amiga de colégio, comunica que está noiva de um poeta. Fernanda, quiçá o alter-ego de Beatriz Pinheiro que foi casada com um, reunia todas as condições exigidas pela sociedade burguesa oitocentista para a concretização de um «bom casamento»: bonita, elegante, medianamente culta, proveniente de uma família que lhe podia assegurar um bom dote. Ao invés, foi a situação disruptiva de muitas mulheres que, a partir da contestação do instituto do dote, levou Beatriz Pinheiro a reflectir, nas páginas da Ave Azul, sobre a condição feminina.

A Chronica, que abria o fascículo 8, de Agosto-Setembro de 1899, apresenta-se como o primeiro texto em que a autora se assume indubitavelmente feminista. Não omitindo o que a preocupava: «a questão da mulher» e o famigerado estatuto do dote, constatava que muitos homens fugiam do matrimónio com mulheres pobres, de que é o exemplo acabado a filha do mestre-escola, personagem central do conto Infanticida. O dote da esposa permitia ao casal uma vida mais desafogada e aos maridos em particular «instalarem-se comodamente na vida». Perguntava-se, então, como sobreviveriam as raparigas pobres, mesmo «bonitas e inteligentes», sem dote e sem marido, revoltando-se contra “contra esta miséria, este aviltamento, esta exploração da mulher pelo homem”[2]. Ao sustento por caridade, ao trabalho pouco digno e mal remunerado ou ao caminho da prostituição, propunha um verdadeiro programa de luta feminista: reivindicação de direitos, igualdade civil e política, acesso a educação e ao emprego. Pinheiro estava consciente de que as suas reivindicações poderiam abalar os alicerces da sociedade em que se movia. Não por acaso, esta sua crónica deu origem a um ataque cerrado, especialmente na imprensa católica.

A luta que Beatriz Pinheiro iniciava pela defesa dos direitos fundamentais da mulher tinha por finalidade o «progresso» da mulher. “Que a mulher progrida sempre, que por todos os meios justos ao seu alcance faça por se tornar igual ao homem, para d’uma vez para sempre, acabar esta pretendida superioridade do com o macho, e ella deixar emfim de ser a misera escrava emparedada e manietada, o ser secundário, ínfimo, que ora está sendo”[3]. Como tinha a certeza de que as suas propostas iam contra a mentalidade vigente e de que a sua aceitação, por mínima que fosse, dependia de mais alterações sociais, defendia um outro modelo educativo masculino, que passasse a inculcar o respeito pela mulher como sua semelhante, completado pela co-educação. Mulheres e homens frequentariam os mesmos espaços escolares, as mesmas turmas as mesmas disciplinas.

Em nenhum dos textos que escreveu, Beatriz Pinheiro colocou em causa a maternidade, bem pelo contrário. Algumas das suas personagens femininas carregavam este profundo fardo. Nem todas foram mães biológicas. Nem todas trataram os filhos com desvelo. Em todas a maternidade foi sulcada pela tragédia. Mas, à maternidade trágica Pinheiro contrapõe uma maternidade responsável. À mãe desgraçada e infeliz antepunha a mãe que educa pelo exemplo e pela palavra, a que acalenta os direitos e os deveres das gerações vindouras, ou seja, a mãe indutora de mudança.

Reacções negativas não se fizeram esperar. O fascículo 11, de Novembro de 1899, abria com uma outra crónica, em que, ao procurar defender-se das acusações que lhe tinham sido imputadas, Pinheiro não só propugnava pelos direitos inalienáveis das mulheres como defendia o feminismo:

“Não fiz feminismo essa coisa terrível que atemorisa ainda muita gente por lhe não conhecer, ou por não queres conhecer, bem todo seu alcance […]; fiz humanitarismo simplesmente […]. É nisto – em libertar, em independentar pelo trabalho os milhões de deserdadas a quem nenhum homem lealmente offereça o seu braço para apoio nas luctas da vida – e se resume afinal todo o feminismo bem entendido e sensatamente esclarecido. Uma questão de pão e uma questão de dignidade: libertá-las da fome e libertá-las da ignomínia”[4].

 

Os «pais de família», especialmente aqueles que sem grandes posses viviam do seu trabalho, não foram esquecidos. Ao dote, que não podiam garantir, propunha o investimento na educação/instrução como ponto de partida para a inserção no mercado de trabalho. Era o trabalho que, para Pinheiro, conferia às mulheres não só a independência monetária mas, sobretudo, as libertava do insidioso estatuto do dote e da dependência de um qualquer marido. A autora levantava, ainda, uma série de pertinentes questões ligadas à honradez e ao desempenho de tarefas justamente remuneradas, sustentando o direito ao trabalho e à emancipação feminina. Atacava as correntes anti-feministas que ligavam a emancipação à masculinização da mulher e à inversão dos tradicionais papéis de género.

Contra a pujante corrente anti-feminista, Beatriz Pinheiro apresentava uma espécie de guião de combate, um verdadeiro manifesto de luta feminista. Na sua opinião, o feminismo tinha por finalidade tornar a mulher intelectualmente e pelo trabalho justamente remunerado independente do homem, acabando com a sua submissão. Não por acaso, sintetizava a sua visão do feminismo em três palavras: instrução, educação e emancipação. A efectiva emancipação da mulher estava intimamente ligada ao binómio educação/trabalho. Ora, os dois textos com o título “A emancipação da mulher” revelam claramente o pensamento da autora. Neles não só defendia a dignificação da mulher pelo estudo e a sua emancipação pelo trabalho, como aludia a uma maternidade responsável. Mais críticas não se fizeram esperar. Reagindo, a autora apodou-as de cegas e preconceituosas, rebatendo-as. Consolidava o seu argumentário trazendo a lume o exemplo das «mulheres do povo»: a camponesa, que trabalhando de sol a sol ainda encontrava tempo para cuidar da prole; a proletária das cidades a quem era exigido um esforço hercúleo. Essas não eram criticadas por trabalharem. Trabalhavam por necessidade, para não morrerem de fome. Beatriz Pinheiro defendia ainda que a mulher tinha toda a competência para a prossecução de múltiplas tarefas em vários domínios: – nos «ofícios», nas artes, nas letras, nas ciências. Para o comprovar, apresentava uma série de exemplos de mulheres inventoras que tinham ultrapassado a limitada soleira da porta do lar. Porém, as capacidades e as competências femininas teriam de ser trabalhadas na escola, retornando a um dos temas que lhe era mais caro, a educação e instrução femininas, advogando a entrada das jovens nas escolas secundárias, superiores e profissionais.

Na viragem do século XIX, não era só o feminismo de Beatriz Pinheiro que brotava das páginas da Ave Azul. Na «Chronica» de Outubro de 1899, fazia uma acérrima defesa do pacifismo, a “grande ideia” do século XIX – a Paz Universal [,] a aspiração do Bem, da Felicidade, a aspiração do único, do definitivo, do verdadeiro progresso sobre a Terra”[5]. A sua juventude, o feminismo assumido, o optimismo que espelhava nos artigos que dava a lume caldeados da crença positivista no progresso como motor social, de onde as mulheres, pelo seu «ardor inexcedível», não poderiam ser arredadas, transformaram-na em arauto do combate ao militarismo e na defesa da arbitragem como forma de resolução dos conflitos entre as nações. Indo mais longe, bem na calha dos socialistas europeus, sustentava até um desejo internacionalista – a comunidade das nações. Para a autora, como para tantos outros pacifistas e revolucionários de fim de século, o único combate possível arraigava na “Guerra contra a Guerra – a única guerra já agora admissível para quantos sobre o caso reflictam livres de preconceitos absurdos”[6].

A reflexão em torno da problemática da Paz – aspiração à Paz universal; a guerra contra a guerra; campanha de propaganda pacífica; irmandade humana – tinha por objectivo preparar os leitores para a divulgação da fundação, em Lisboa, da Liga Portuguesa da Paz, precisamente no dia em que, em Haia, na Holanda, se iniciava a primeira Conferência de Paz – 18 de Maio de 1899.

Dezassete anos depois, o discurso de Beatriz Pinheiro era bem diferente. Indubitavelmente o mundo mudara. A utópica “Guerra à Guerra» ia já longe. Em 1916 a guerra de trincheiras fazia parte do quotidiano europeu. A 6 de Março, a Alemanha declarava guerra a Portugal, aliado antigo de Inglaterra. O governo da «União Sagrada», no poder desde o dia 15 desse mês, insistia na tese intervencionista. A 15 de Junho, Inglaterra convidava formalmente Portugal a tomar parte activa nas operações militares aliadas, sendo constituído o Corpo Expedicionário Português. A partida para o cenário da Flandres era uma realidade. As hostes pro-intervencionismo e anti-germânicas agitavam-se.

Na conferência que proferiu a 8 de Junho de 1916, no Liceu Maria Pia, onde era docente, Beatriz Pinheiro enveredou também por uma linha patriótica, completamente anti-germânica e pro-aliada. Não era já a jovem cheia de bondosas utopias de dezassete anos antes, mas a mulher politicamente comprometida com o Partido Democrata, o mais acérrimo defensor do intervencionismo português. Pinheiro mais não fez do que seguir o caminho trilhado por muitas outras mulheres, feministas e pacifistas como ela, que, por essa Europa fora, dos dois lados da barricada, deixaram falar mais alto o patriotismo exacerbado pelo contexto bélico. Não foi sem um amargo peso na alma que Beatriz Pinheiro iniciou a sua conferência de Junho de 1916. São suas estas palavras:

“A hora que atravessamos é de angustiosa expectativa para todos (…) principalmente para quantos vivam mais pelo coração do que pelo cérebro (…) agora confusos perante a derrocada dos seus sonhos de paz, das suas teorias de progresso. Quanto a mim, – mulher e pacifista de há vinte anos, fazendo em tempos (…) o melhor que pude e soube, calorosa propaganda da paz mundial – confesso-lhes que me senti, a princípio mais que confusa, horrorizada à vista da hecatombe da guerra actual”[7].

Pinheiro que tinha consciência de que a Guerra marcaria «com pasmo e horror» as gerações seguintes, particularmente as mulheres «por natureza, educação, coração e espírito» amantes da paz, procurou explicar os motivos políticos e estratégicos por que Portugal não podia ficar longe do teatro bélico. Indo mais longe, viu no conflito a oportunidade para as mulheres portuguesas entrarem em larga maioria no tecido produtivo. “Preparemo-nos para substituí-los, para suprir a sua falta, tanto quanto possível, na agricultura, na indústria, no comércio, nos serviços do Estado, em todos os trabalhos em suma, que até hoje lhes estavam confiados”[8]. Não era este também um dos objectivos da sua luta feminista?

Feminista, republicana e simpatizante do Partido Democrático, Beatriz Pinheiro soube, além de ler as contingências dum tempo especial como foi o da 1ª Guerra Mundial, posicionar-se politicamente. Porém, como a jovem viseense que escrevia polémicas crónicas na revista Ave Azul, nunca deixou de ter a crença utópica na possibilidade da Paz. A guerra aparecia como um compasso de espera, como a via sinuosa para um outro estádio da sociedade, mais justa e pacífica, e a participação portuguesa no conflito mundial como a afirmação de Portugal no concerto das nações.

 

Pertencendo ao primeiro feminismo português, Beatriz Pinheiro integra um grupo de mulheres que o tempo obnubilou. Ora, pelo pensamento que desenvolveu, particularmente na revista Ave Azul, uma revista concebida, produzida e editada numa pequena e conservadora cidade de província, ainda que capital de distrito, merece ser recordada, lida e o seu pensamento analisado. Pinheiro soube, em finais de oitocentos, explicitar um ideário feminista que, resumindo-se a três simples palavras – independência, educação, trabalho – colocava em causa o modelo patriarcal vigente.

Mas a feminista era republicana e pelos ideais da República deu a cara. Se, como pacifista, sustentou a inutilidade da guerra e o caminho da Paz como motor de progresso, como militante do Partido Democrático veio a terreno defender a entrada de Portugal no cenário europeu da 1ª Guerra Mundial. Este aparente paradoxo ajuda a contextualizar a evolução do seu pensamento, sendo que se manteve fiel ao republicanismo veiculado pelo partido em que militava.

No dia que se comemoram os 150 anos do seu nascimento, urge, mais uma vez, tirar Beatriz Pinheiro do esquecimento. Ora, esse puxar pela memória, terá de passar pela compilação do que deixou disperso por vários jornais e revistas. Um trabalho que pretendo levar a cabo, começando pela reunião do que publicou, ao longo de dois anos, na revista viseense Ave Azul.

Prestemos então, todas e todos, o nosso preito a esta mulher de excelência.

 

 

 

 

 

[1] Lemos, Carlos de, s/ título, Ave Azul, Viseu, série 1, fascículo 1, 1-5, Janeiro, 1899.
[2] Pinheiro, Beatriz. Chronica, Ave Azul, Viseu, série 1, fascículo 8/9, p 321-327, Agosto-Setembro, 1899.
[3] Pinheiro, Beatriz. Chronica, Ave Azul, Viseu, série 1, fascículo 8/9, p 321-327, Agosto-Setembro, 1899.
[4]Pinheiro, Beatriz. Chronica, Ave Azul, Viseu, série 1, fascículo 11, p 497-506, Novembro, 1899.
[5] Chronica, Ave Azul, nº 15, Outubro, 1899, p 434.
[6] Chronica, Ave Azul, nº 15, Outubro, 1899, p 434.
[7] . Pinheiro, Beatriz. A mulher Portuguesa e a Guerra Europeia., publicação da Associação de Propaganda Feminista, 1916, p 5.
[8] Pinheiro. A mulher Portuguesa e a Guerra Europeia, p 22.

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