Recordar é dar vida

Neste dia, saboreio as amoras, os gasalhos, as sanchas, a folha larga, as putigas e os cravos do tio Carvalhoto e queimo a língua com os figos secos assados nas brasas que o tio João Basílio trazia no bolso e partilhava comigo e com as minhas irmãs na cozinha da casa do Corgo. Relembro com especial carinho o punhado das amoras na folha de couve que o tio Carvalhoto me levou a casa, quando estava grávida da minha filha mais velha.

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  • 16:21 | Sexta-feira, 31 de Outubro de 2025
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Não tenho por hábito ir com frequência ao cemitério, julgo dever-se ao facto de na minha criação este ser um lugar que normalmente só era aberto nos dias dos enterros e na altura dos Santos, no entanto, não tenho memória de não ter ido ao cemitério da minha terra no Dia de Todos os Santos.

Neste dia, reencontramos amigos e familiares espalhados pelos quatro cantos do país e da Europa e recordamos amigos e familiares que partiram para uma viagem que se julga sem regresso.

Neste dia, ao olhar para o rostos das centenas de pessoas que se encontram no cemitério leio o peso da tristeza e da dor da perda, mas também a leveza da saudade e da partilha.

Neste dia, recordo de forma muito sentida e vivida os momentos passados juntos daqueles que partilharam comigo uma parte da minha vida terrena e que continuam a fazer parte da minha vida que chamo “vida do coração”.


Neste dia, sinto a suavidade das mãos da Virita, quando desempenha a função de manicure para todas as vizinhas, vivo intensamente as tardes de estio no quarto refrescante da Ermelinda, onde se falava de tudo e onde se desabafavam amores e desamores. Se aquelas paredes falassem diriam muito da história das rapariguinhas e rapazes da nossa idade.

Neste dia, saboreio as amoras, os gasalhos, as sanchas, a folha larga, as putigas e os cravos do tio Carvalhoto e queimo a língua com os figos secos assados nas brasas que o tio João Basílio trazia no bolso e partilhava comigo e com as minhas irmãs na cozinha da casa do Corgo. Relembro com especial carinho o punhado das amoras na folha de couve que o tio Carvalhoto me levou a casa, quando estava grávida da minha filha mais velha.

Neste dia, relembro o humor e a forma brincalhona como encarava a vida, da tia Esmeralda e o dia em que o tio João me convidou para ser sua comadre , era eu apenas uma menina de treze anos.

Neste dia saboreio cada chocolate, cada caramelo, cada rebuçado que a tia Maria guardava na maceira e que nos dava com conta peso e medida, para nos adoçar a boca ao longo de um ano. Afinal os filhos só vinham com essas iguarias do estrangeiro no mês de Agosto e era preciso gerir muito bem este banco de guloseimas.

Neste dia, ouço o som dos tamancos do avô Calhau ao subir e descer as escadas de pedra e a calçada com o regador de água que ia buscar à fonte da Tulha, ouço o tilintar do terço nas suas mãos e relembro cada uma das histórias que ele contava.

Neste dia, sinto água na boca com o caldo no pote, com as bolas feitas na sertã com a massa do pão, com as castanhas cozidas no ponte de uma malga, da avó Maria e com a água de ovo da avó Arminda.

Neste dia, vivo uma vida já vivida e agradeço por todas estas pessoas e muitas outras terem feito parte da minha vida.

Neste dia, tenho a certeza que as pessoas só morrem verdadeiramente quando já não existe ninguém que fale delas e que as recorde.

Neste dia, penso nas palavras de Santo Agostinho, quando perdeu a sua mãe: Não vou chorar por te ter perdido, vou agradecer por te ter tido.

Neste dia, vivo ao lado dos meus mortos…

 

Ondina Freixo

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Publicado em Opinião