Poucos reis portugueses concentraram tanto poder e tanto medo como D. João II. A alcunha de Príncipe Perfeito não disfarça a sombra que o acompanhou ao longo do reinado. A inteligência e o cálculo político caminharam lado a lado com a frieza e uma desconfiança quase doentia. O trono era, para ele, uma estrutura frágil que precisava de ser defendida a todo o custo, mesmo que esse custo fosse o sangue da própria família.
O ano seguinte trouxe o episódio mais impressionante da vida de D. João II. Em Setúbal, o rei mandou chamar o duque de Viseu, D. Diogo, seu primo e cunhado, sob o pretexto de tratar de assuntos de Estado. Quando o duque entrou nos aposentos reais, o rei puxou da adaga e matou-o com as próprias mãos. Nenhum intermediário, nenhum carrasco, nenhum tribunal. Apenas o rei e a vítima, num ato seco e brutal que deixou a corte em silêncio. A monarquia portuguesa nunca mais foi a mesma.
A imagem do visionário das descobertas costuma ofuscar o rosto severo do homem que consolidou o Estado pela força. A centralização do poder, que garantiu a estabilidade necessária à expansão ultramarina, nasceu em ambiente de medo e suspeita. O sangue derramado em nome da razão de Estado permanece como cicatriz na história portuguesa, lembrando que a perfeição de D. João II se mediu também pelo preço da crueldade.
Outra curiosidade prende-se com o arrependimento tardio de D. João II. Nos últimos anos de vida, marcado pela morte do filho D. Afonso, o rei procurou reconciliar-se com Deus. Mandou erguer igrejas e distribuiu esmolas, talvez na esperança de lavar as mãos manchadas pelo sangue dos seus. A perfeição que o tempo consagrou nasceu de um reinado de aço e de solidão. O homem que sonhou o império morria, afinal, cercado pelos fantasmas dos que mandou matar.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor