A tarde de 14 de agosto de 1385 permanece na alma portuguesa como o instante em que a inteligência venceu a força. Entre Alcobaça e Leiria, um punhado de homens comandado por D. Nuno Álvares Pereira enfrentou o exército de Castela, numeroso, confiante e cercado de nobreza. O que parecia uma luta desigual tornou-se uma aula de estratégia militar e um dos maiores símbolos da identidade nacional.
O Condestável escolheu o terreno com minúcia. O campo de São Jorge era estreito, ladeado por vales e declives que limitavam os movimentos da cavalaria. Mandou cavar fossos, esconder armadilhas, dispor besteiros nas alas e arqueiros no alto. A formação, densa e disciplinada, transformou-se numa muralha viva. Quando as hostes castelhanas avançaram, a arrogância cavaleiresca colidiu com a matemática da guerra. A carga, que parecia imparável, desfez-se em minutos contra lanças fixas e lama profunda. As lanças portuguesas não recuaram, e o quadrado permaneceu intacto, como se a própria terra o defendesse.
Poucos imaginam que mais castelhanos morreram fora do que dentro da batalha. Após o colapso das linhas principais, a retirada foi um massacre. Nas estradas que conduziam a Santarém e a Leiria, centenas tombaram nas mãos de camponeses que, munidos de foices e enxadas, caçavam inimigos em fuga. As aldeias próximas tornaram-se armadilhas mortais, e o orgulho de Castela perdeu-se entre valas e ribeiros. As crónicas contam que as águas ficaram vermelhas durante dias, e que o próprio D. João de Castela escapou por um triz, protegido pela noite e pela confusão.
A vitória de 1385 não foi um milagre, como muitos quiseram crer. Foi o resultado da disciplina, da preparação e da mente de um homem que entendeu antes dos outros que o segredo da guerra moderna estava na ordem e não na fúria. D. Nuno Álvares Pereira transformou um exército de camponeses num organismo matemático. E assim, o quadrado de Aljubarrota, aquele mesmo que já derrotara os espanhóis noutras terras, voltou a fazê-lo em solo português, para que o país pudesse continuar a chamar-se Portugal.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor