Em tempos de ruído e vaidade, onde os heróis se medem pelo número de seguidores e não pela grandeza do sacrifício, convém recordar um português que, no silêncio de Roma, arriscou tudo para salvar vidas. O seu nome não aparece nas manchetes dos jornais, não inspira séries da Netflix nem campanhas ministeriais. Mas devia ser ensinado nas escolas, gravado em placas de rua e pronunciado com respeito: Padre Joaquim Carreira, o Justo entre as Nações.
Nascido em Leiria, em 1908, Joaquim Carreira era um homem discreto, um padre católico português como tantos outros — até que a História o chamou. Quando as tropas de Hitler ocuparam Roma em 1943, o medo instalou-se em cada rua, cada janela, cada consciência. E foi nesse clima de terror que o reitor do Pontifício Colégio Português se recusou a ser neutro.
Enquanto diplomatas e altos dignitários preferiam a prudência ao risco, Padre Carreira escolheu a coragem. Escondeu judeus perseguidos dentro das paredes do colégio que dirigia — homens, mulheres, crianças. E escondeu também combatentes antifascistas italianos. Fê-lo com astúcia, mas sobretudo com humanidade. Não pediu medalhas. Pediu silêncio e discrição. E salvou vidas.
É curioso, e triste, notar que durante décadas Portugal ignorou a grandeza deste seu filho. Foi preciso o Estado de Israel descobrir os seus feitos, investigar os seus actos e, finalmente, reconhecê-lo em 2015 com o título de “Justo entre as Nações” — distinção reservada a quem, não sendo judeu, arriscou a própria vida para salvar judeus durante o Holocausto.
É um sintoma português: celebramos os nossos heróis quando já é tarde, quando já morreram, quando já não causam incómodo. Mas o seu exemplo incomoda, porque obriga a uma pergunta: e nós, no lugar dele, teríamos feito o mesmo?
Numa época em que a neutralidade moral volta a disfarçar-se de moderação, e a coragem cívica é substituída por cálculos políticos, recordar o Padre Joaquim Carreira não é apenas um acto de justiça. É um apelo. Um desafio. Um murro na mesa da nossa complacência.
Mais do que padre, mais do que português, foi humano num tempo desumano. E isso basta para lhe erguer memória.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor