Imaginemos Atenas. Não a do turismo ou das ruínas, mas a do pensamento vivo. Na colina do Areópago, entre as sombras do olival e o pó das sandálias, reuniram-se os grandes. Heródoto, Hipócrates, Sófocles, Platão, Aristófanes, todos convocados para um conclave urgente. Estavam indignados. Um jovem discípulo de Aristófanes — um autoproclamado “intocável do humor” — defendera que os humoristas não podiam ser julgados por coisa alguma, pois tinham, dizia ele, “uma função moral, quase sagrada, na polis”.
Foi Hipócrates o primeiro a levantar-se, com a compostura de quem lavou muitas feridas e encarou a morte nos olhos. “Desde quando fazer rir pesa mais que curar a febre ou a peste? E se um médico errar, quem morre é o corpo; mas se um humorista errar, quem morre é o carácter dos outros.” Heródoto acenou com a cabeça. “Eu recolhi histórias de reis, guerras e povos. Fui acusado de mentiroso, de bajulador e até de estrangeirado. Mas nunca pedi imunidade por relatar o mundo. Por que razão, então, o cómico deveria ser declarado inviolável?”
Ao longe, ouviu-se Aristófanes suspirar. “O humor deve ser livre”, disse, “mas não irresponsável.” E com isso selaram o veredito: não há toga para quem se exime do peso dos próprios actos, invocando para si uma liberdade que nega aos outros.
O que está em causa não é censura, nem processos judiciais. É a velha questão da humildade. Todas as profissões erram. Mas só algumas se habituaram a disfarçar o erro de coragem. Médicos, professores, juízes e jornalistas são criticados, julgados e respondem pelos seus actos. Por que motivo haveria o humor — esse sublime tempero do espírito — de escapar ao escrutínio da ética?
O jovem discípulo de Aristófanes, dizem, saiu da assembleia com um ar pesaroso. Continuava convencido da sua importância civilizacional. Mas ali aprendeu que até o humor, quando se leva demasiado a sério, corre o risco de deixar de ter graça.
Paulo Freitas do Amaral, Historiador e Autor