A História oficial celebra D. Afonso Henriques como o fundador do reino, o guerreiro da independência, o herói da reconquista. Mas raramente nos fala do homem que o acompanhou até à morte e que jaz ao seu lado, no mesmo túmulo, no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Falo de D. Pedro Afonso, o seu filho mais velho, nascido da sua relação com Flamula Gomes, uma nobre da corte. Ilegítimo, sim, mas reconhecido, formado na guerra e na diplomacia, e, em muitos momentos, tratado como herdeiro natural. Nunca foi rei — mas lutou como tal. E morreu esquecido por quase todos, salvo pelo pai, que quis que repousasse consigo.
O conflito entre Pedro Afonso e D. Sancho não foi um detalhe de bastidores, mas um choque de legitimidades. Pedro era o mais velho e sentia-se, com razão, preparado para liderar. Sancho era o herdeiro legítimo, filho do casamento régio com D. Mafalda de Sabóia, e teve sempre a protecção das instituições eclesiásticas e diplomáticas. Pedro Afonso foi afastado da corte, recolheu-se nas suas terras no centro do país e dedicou-se à fundação de mosteiros, à administração local e à consolidação do património da Coroa.
Apesar do exílio interno a que foi condenado, Pedro Afonso nunca deixou de servir o reino. A sua proximidade à causa monástica, em particular à Ordem de Cister, contribuiu para a fundação de Alcobaça e de outros centros que marcaram profundamente a identidade medieval portuguesa.
Mais do que um bastardo guerreiro, Pedro foi também um homem de visão, de cultura e de fé. Deixou descendência, incluindo o seu filho Fernão Pires, documentado em várias fontes da época, o que faz de Pedro Afonso uma peça-chave para qualquer investigação genética sobre os primeiros reis de Portugal.
É por isso que abrir o túmulo de D. Afonso Henriques não é um capricho académico, nem um gesto de profanação. É um acto de justiça. Um dever para com a ciência, para com a verdade e para com a nossa identidade nacional. A análise de ADN aos restos mortais — de ambos — permitiria confirmar, com rigor, a identidade do primeiro rei de Portugal e esclarecer definitivamente o que tantas vezes se disse sem prova. Mais ainda: permitiria, através da descendência documentada de Pedro Afonso, como Fernão Pires, estabelecer conexões genéticas que hoje a ciência já pode fazer com precisão e respeito.
Se países como Inglaterra, França ou Espanha não hesitaram em aplicar as técnicas da arqueogenética aos seus reis, por que continua Portugal prisioneiro do mito da inviolabilidade absoluta? Não é preferível sabermos com certeza onde repousa o nosso primeiro rei? E não será também tempo de resgatar da sombra aquele que, sendo seu filho primogénito, deu tudo pela fundação do reino e morreu fora da História — mas ao lado do pai?
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor