A proposta da Iniciativa Liberal para substituir a disciplina de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) por um novo currículo centrado na Inteligência Artificial (IA) ainda não foi oficialmente adotada pelo Governo — mas os sinais apontam nesse sentido.
No contexto das recentes reformas curriculares, tudo indica que esta será mais uma medida acolhida em nome de uma modernidade mal digerida, que confunde vanguarda com improvisação.
Não está em causa a importância crescente da IA no mundo contemporâneo. Está em causa o erro de confundir inovação com progresso, aceleração com desenvolvimento, utilidade com formação integral. A proposta é sintomática de uma política educativa que aposta em slogans e tendências, ignorando a realidade concreta das escolas, dos alunos e dos professores.
A disciplina de TIC — mal-amada, mal ensinada e, em muitos casos, reduzida a exercícios de formatação de texto — tem, no entanto, um papel simbólico e prático de primeira ordem. Representa o primeiro contacto estruturado dos alunos com os fundamentos do mundo digital: ética da informação, segurança na internet, pensamento computacional, literacia mediática, noções básicas de hardware e software. Não é uma disciplina de moda: é uma disciplina de base.
Sobretudo no 2.º ciclo — em pleno 5.º e 6.º anos — os alunos estão ainda a dar os primeiros passos no uso de ferramentas digitais elementares: aprender a usar um processador de texto, a criar uma apresentação em PowerPoint, a distinguir fontes fidedignas de informação online, a colaborar num ficheiro partilhado.
Esta aprendizagem, que para muitos é o verdadeiro primeiro contacto com a linguagem digital estruturada, não é um luxo nem um anacronismo: é uma necessidade básica. Vamos agora abandonar este percurso a meio? Vamos exigir que crianças que mal sabem usar um teclado compreendam o funcionamento de redes neuronais artificiais?
A possível substituição de TIC por IA ignora três aspetos essenciais: primeiro, a maioria das escolas portuguesas não está preparada — do ponto de vista técnico nem pedagógico — para um ensino sério, universal e equitativo de Inteligência Artificial. Segundo, a IA não é um conteúdo isolado, mas uma aplicação avançada que pressupõe conhecimentos prévios de lógica, matemática, programação e ética digital. Em suma, pressupõe a existência… da própria disciplina de TIC.
Mas há ainda uma terceira razão, menos discutida e talvez mais reveladora: a escassez crónica de professores de TIC no sistema público de ensino. Durante anos, o grupo de recrutamento 550 tem sido negligenciado. Muitas escolas sobrevivem com professores sem formação específica, técnicos externos ou improvisações administrativas. Não se formam docentes suficientes, não se criam incentivos para atrair profissionais da área para a carreira docente, e os que existem estão sobrecarregados.
Será que a pressa em acolher esta proposta liberal — ainda embrulhada em roupagens futuristas — não é, afinal, uma forma encapotada de resolver um problema que o Estado tem sido incapaz de enfrentar? Se faltam professores de TIC, apaga-se a disciplina. Problema resolvido, pelo menos no Excel ministerial. É o tipo de solução que parece moderna, mas é apenas oportunista.
Este tipo de medida brota de uma visão minimalista do ensino, onde a escola pública deve preparar “recursos humanos” para as “necessidades do mercado”, e não formar cidadãos conscientes, críticos e responsáveis. A IA, assim ensinada, não seria mais do que uma nova gramática para novos servos, prontos a alimentar algoritmos que não compreendem. Não seria formação, mas adestramento.
Defendo, ao invés, um reforço da disciplina de TIC — com uma reformulação dos seus programas, sim, e com a progressiva integração de conteúdos sobre IA, ética tecnológica e algoritmos — mas sem abdicar da visão humanista do ensino. A tecnologia deve ser instrumento de libertação, não de alienação.
A eventual substituição de TIC por IA não é neutra. É uma escolha ideológica, nascida da Iniciativa Liberal e que o Governo, ao que tudo indica, se prepara para abraçar. E, como tantas outras, revela a matriz de um certo liberalismo à portuguesa: pouco culto, muito afobado, e perigosamente insensível ao valor da escola como espaço de formação integral.
Não precisamos de menos TIC. Precisamos de mais sentido crítico, mais responsabilidade social e mais cultura digital enraizada. A começar pela política.