“Eu matei a minha filha”

  No ano de 1964, uma menina era uma menina e um menino era um menino, géneros diferentes. O Código Penal ditava uma norma que permitia os pais matarem as filhas se “desonradas”, lei alterada em 1975. Em 1966, as mulheres só podiam viajar com os maridos, só eram admitidas num emprego com autorização dos […]

  • 13:12 | Sábado, 25 de Agosto de 2018
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No ano de 1964, uma menina era uma menina e um menino era um menino, géneros diferentes. O Código Penal ditava uma norma que permitia os pais matarem as filhas se “desonradas”, lei alterada em 1975. Em 1966, as mulheres só podiam viajar com os maridos, só eram admitidas num emprego com autorização dos maridos também, não podiam votar. E mais e a Constituição de 1932, dizia, “quanto às mulheres, as diferença da sua natureza e o bem de família”.

 


E o caro leitor, diz: “ainda bem que hoje não é assim”, mas infelizmente é, basta pensar na polémica com os livros da Porto Editora, os livros das meninas e dos meninos, eram diferentes, os exercícios para as meninas eram mais fáceis, como se as mulheres fossem mais “burras”.

A garantia de direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres começa na infância. Para isso, é preciso desconstruir clichés de género desde cedo, em casa e na escola. O caminho para igualdade começa muito cedo. Quantos de nós ouviram dos seus pais, expressões como:” um homem não chora”, “ as meninas chegam a casa cedo”, “ as meninas não devem sair de casa”, “ o futebol é para meninos”, “ aquele carro ali à frente… só pode ser uma mulher a conduzir”.

NÓS SOMOS IGUAIS, é só isto, simples…

Aja antes que seja tarde!

 

Cadu Castro, pai, machista, cheio de estereótipos mentais, matou a sua filha. Quantos Cadu Castro existem ainda neste mundo, que por machismo matam as suas filhas. Transcrevo o texto na íntegra.

 

 

COMO EU MATEI A MINHA FILHA
Por Cadu Castro

“Sou machista. Fui criado assim. Cresci, casei e tive uma filha. Sempre subjuguei a minha mulher, o que achava ser completamente natural. Afinal, o machismo é tão estrutural que se naturaliza. Usava adjetivos como incompetente, idiota, estúpida, para criticar muitas de suas falas e posturas, e assim a diminuir, apequenar. Nunca a agredi fisicamente, mas praticava a violência psicológica. Minha filha foi criada nesse ambiente.
Eu ria das piadas que humilham ou desqualificam as mulheres, e as reproduzia. Quando alguma se ofendia e reclamava, eu perguntava se não tinha senso de humor, era só uma piada, uma brincadeira. Além disso, sempre fui muito moralista, especialmente quando via mulheres com roupas muito curtas. Tantas vezes disse que estavam pedindo para serem estupradas. Lembro de uma vez que me contaram sobre um caso de estupro de uma moça “moderninha” do bairro onde moro, e questionei se foi estupro mesmo. Afinal, ela abusava, pedia, né? Minha filha ouvia tudo isso.
Defendia que homens e mulheres são muito diferentes e os direitos não poderiam ser iguais. Reproduzia as falácias de que homem é mais racional, mulher é mais sentimental; que um monte de mulher num mesmo ambiente de trabalho não dá certo; que mulher fala demais; que mulher gosta de fofoca; que homens são mais competentes para gerir negócios; que tem mulher que gosta de apanhar; que criança mal-educada é culpa da mãe, etc. Minha filha aprendeu tudo isso.
Uma vez um vizinho agrediu fisicamente sua mulher. Minha esposa e minha filha falaram em chamar a polícia. lmpedi-as. Disse que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Quem sabe o que ela fez pra ele perder a cabeça? Minha filha introjetou essa ideia.
Eu desumanizava a figura feminina. As mulheres mais independentes e desprendidas das regras morais as quais eu defendia, eu chamava de vaca, piranha, galinha. Dizia que feminismo é coisa de mulher mal comida, feia, desajustada, recalcada. Ficava ofendido quando alguém me chamava de machista, dizia, “nem machismo, nem feminismo, nada de ismos”. Minha filha chegou até a reproduzir algumas dessas minhas falas.
Recordo quando ela me apresentou a ele. Estavam começando a namorar. Uma vez a ouvi conversando com uma amiga e dizia que ele era meio grosseiro às vezes, mas homem era assim mesmo, né? Eu era a sua referência.
Outra vez falava com uma prima sobre ter encontrado ele com outra, mas ele se desculpou e disse que a amava. Lembrou que há alguns anos, a mãe também havia descoberto algumas puladas de cerca minhas, e que isso era coisa de homens mesmo.
Eu gostava dele. Era um cara muito simpático e trabalhador. Ria muito das piadas que eu contava sobre mulheres e até trouxe algumas novas que ampliaram meu repertório.
Casaram-se. Com a minha bênção. Uma vez ela reclamou para a mãe que ele era muito ciumento e a cerceava. Envolvi-me na conversa e disse que ele era o homem da casa e ela tinha de respeitá-lo, e que ciúme era sinal de amor. Ela concordou. Percebi que algumas vezes ele falava com ela de uma forma agressiva. Chamei-o para uma conversa. Pediu-me desculpas, disse que ia se policiar, “mas que mulher falava demais, sabe como é, acaba deixando a gente nervoso”… Acabei concordando com ele.
Há pouco tempo ela chegou em casa com um hematoma no olho, o rosto inchado e marcas nos braços. Perguntei o que era aquilo e ela respondeu que havia caído das escadas, mas estava bem, que eu não precisava me preocupar. Perguntei se estava tudo bem entre ela e o marido. Ela disse que sim, que ele a amava.
Ontem recebi uma ligação da polícia. Soube que minha filha estava morta. O seu companheiro a havia atirado da varanda do apartamento no décimo andar, ou a esfaqueado, ou a alvejado, ou a estrangulado, ou a agredido até a morte, durante uma briga conjugal.
Vizinhos ouviram os gritos de socorro dela, mas ninguém se envolveu ou chamou a polícia, afinal, em briga de marido e mulher não se mete a colher.
Eu cai, ou fui esfaqueado, ou agredido, ou estrangulado, ou alvejado, junto com minha filha. Agora jazo neste chão frio. A queda, ou o tiro, ou o estrangulamento, ou a agressão, ou a facada, que destroçou minha alma, aguçou meus sentidos. Consigo ver, consigo ouvir. Vejo agora com uma clareza e lucidez que me lancinam: o machismo, que sempre naturalizei e reproduzi, oprime, fere, mata. Ouço o grito dos feminismos. É um grito de dor. É um grito ancestral. É um grito por igualdade de direitos e oportunidades. É um grito por respeito. É um grito pela vida. É o grito da minha filha, e da sua.
Agora é tarde para mim. Agora é tarde para ela. Matei minha filha. A cada ato machista eu matei minha filha. Matei também outras filhas, irmãs, mães… Reproduzir o machismo é sujar as mãos de sangue”

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