Portugal esquece com método. Esquece quem foi incómodo, quem viveu antes da hora certa, quem desafiou o que estava estabelecido sem pedir licença. Há nomes que ardem em silêncio nos intervalos da História, nomes de mulheres que ousaram existir num país que preferia que elas fossem invisíveis.
Carolina Michaëlis (1851–1925), Beatriz Ângelo (1878-1911) e Maria Lamas (1893–1983) não têm uma data comum, nem partilharam amizade, nem vestiram as mesmas causas. Mas estão unidas por um gesto comum. Todas chegaram antes do seu tempo em Portugal. E pagaram o preço.
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, não era portuguesa de nascimento, mas mais portuguesa do que muitos dos seus contemporâneos. Era filóloga, apaixonada pela língua, pelas cantigas de amigo, pelo rigor gramatical e pela liberdade de pensamento. Foi a primeira mulher a ensinar numa universidade portuguesa. Não porque lho permitiram, mas porque o impôs. Com inteligência e firmeza, atravessou um mundo académico que a olhava como curiosidade e saiu de lá como mestra. Não quis ser símbolo. Quis ser normal. E isso foi talvez o seu maior escândalo.
Beatriz Ângelo, médica e viúva, votou. Em 1911. Quando nem os homens o faziam todos, quando a República ainda andava em braços com os seus próprios mitos. Votou porque sabia ler. Porque encontrou na lei uma brecha. Uma palavra que não a excluía. Chefe de família. E entrou por aí. Não pediu autorização. Votou. Foi a primeira mulher portuguesa a fazê-lo, sem ter sido chamada, sem ter sido esperada. A República, nervosa, tapou o acontecimento com silêncio. Mas o gesto ficou. Era impossível não ter acontecido…
Maria Lamas percorreu o país para ver. E viu. Com olhos abertos e com a coragem de quem sabe que ver é já um ato político. Escreveu As Mulheres do Meu País como se fosse um grito coletivo. Deu rosto e voz a camponesas esquecidas, operárias silenciadas, mães sem direitos. Fotografou-lhes a dor, escreveu-lhes a vida. A ditadura respondeu como sempre responde aos que incomodam. Censura, prisão e exílio. Mas Maria Lamas continuou. Nunca aceitou calar-se. Nem esquecer.
A verdade é esta. Portugal gosta das mulheres que chegam depois, depois da luta, depois do tempo, depois da morte. Gosta delas discretas, simbólicas, inofensivas. Mas Carolina, Beatriz e Maria não chegaram depois. Chegaram antes e por isso continuam a ser incómodas.
É tempo de mudar os manuais. É tempo de nomear escolas com verdade. É tempo de ensinar quem de facto ensinou o país a respirar porque um país que não sabe o nome das suas mulheres corajosas é um país que ainda não sabe o seu próprio nome.
(Fotos DR)
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor