A revista que Hitler mandava distribuir em Portugal

Não havia cadáveres, nem campos de concentração, nem ruínas. Havia uma imagem trabalhada da Alemanha como potência moderna, limpa, racional, invencível. Era este o retrato que a máquina de propaganda do Terceiro Reich pretendia projetar junto dos portugueses, e que muitos acolhiam com interesse.

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  • 12:25 | Sábado, 09 de Agosto de 2025
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Entre 1941 e 1943, durante os anos mais sombrios da Segunda Guerra Mundial, Portugal, país oficialmente neutro, tornou-se território de penetração de uma sofisticada operação de propaganda nazi.

Chegavam por comboio, vindos de Paris, milhares de exemplares da edição portuguesa da revista Signal, publicada com o título SINAL. Eram cuidadosamente distribuídos por livrarias, quiosques, cafés, embaixadas e entidades selecionadas, com especial atenção a oficiais, jornalistas, padres, empresários e figuras influentes.

A revista era produzida em Berlim e impressa em França, com tiragens controladas e uma qualidade gráfica invulgar para a época. As capas surgiam frequentemente a cores, numa altura em que tal ainda era um luxo reservado a poucas publicações internacionais. As fotografias mostravam soldados alemães bem fardados, cidades organizadas, desfiles, tecnologias avançadas, operárias sorridentes. Não havia cadáveres, nem campos de concentração, nem ruínas. Havia uma imagem trabalhada da Alemanha como potência moderna, limpa, racional, invencível. Era este o retrato que a máquina de propaganda do Terceiro Reich pretendia projetar junto dos portugueses, e que muitos acolhiam com interesse.


A operação era coordenada a partir da Legação Alemã em Lisboa, sob a direção do chanceler Wilhelm Klein e executada no terreno por Kurt Zehntner, adido de imprensa e agente cultural alemão. Este último assumia a responsabilidade de receber os volumes, gerir a distribuição, controlar os pagamentos e remeter os lucros para Berlim. Tudo funcionava com uma precisão germânica. A propaganda era tão disciplinada como o exército que representava.

Estima-se que tenham sido distribuídos cerca de 15 mil exemplares em Portugal ao longo dos dois anos em que a revista circulou. O número é significativo, considerando o contexto da época. A neutralidade portuguesa não impediu que a SINAL fosse permitida e até discretamente incentivada pelas autoridades. A censura do Estado Novo, embora vigilante, deixava passar esta publicação sem grande resistência. A estética e o conteúdo encaixavam-se bem nos ideais da ordem, da disciplina e da autoridade que o regime salazarista cultivava. A Alemanha era observada com uma certa admiração técnica e cultural, mesmo que o seu autoritarismo fosse excessivo aos olhos de Lisboa.

O impacto da SINAL não deve ser subestimado. Embora Portugal não tenha aderido politicamente ao Eixo, a revista representou uma tentativa clara de ganhar terreno ideológico junto da elite portuguesa. Não se tratava de doutrinar de forma direta, mas de introduzir uma visão do mundo. Uma visão em que a Alemanha liderava, a modernidade era inseparável da força, e o progresso surgia associado à obediência e à ordem. O método era subtil, quase inofensivo na aparência, mas profundo na intenção.

A força da revista residia precisamente na sua capacidade de disfarçar a propaganda sob uma aparência de modernidade editorial. Os leitores não se sentiam manipulados, mas informados. Não percebiam que o conteúdo era cuidadosamente filtrado para ocultar a brutalidade do regime nazi. A beleza gráfica servia para mascarar a violência política.

Hoje, um exemplar da SINAL é uma peça de estudo. Permite observar como a propaganda se transforma com o tempo, como se adapta ao meio onde é inserida e como pode operar mesmo em contextos oficialmente neutros. A presença desta revista em Portugal é mais do que uma nota de rodapé. É uma evidência de que a Segunda Guerra não se travou apenas nos campos de batalha, mas também nas ideias, nas imagens, nas palavras impressas. E que o nosso país, mesmo mantendo-se à margem do conflito armado, não esteve imune às tentativas de influência por parte de um dos regimes mais perigosos do século XX.

A história da SINAL em Portugal recorda-nos que a propaganda mais eficaz não é a que se impõe, mas a que se insinua. E que, em tempos de guerra, a neutralidade pode ser apenas uma aparência.

 

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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