E depois do adeus

Sempre a sacudir responsabilidades, a velha esquerda saracoteia-se no largo dos heróis e dos mártires da Pátria. Nomeia os mordomos do festim, veste opas garridas, carrega o santo no andor, contrata a banda, encomenda os foguetes que estoiram nos céus.

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  • 13:00 | Segunda-feira, 12 de Maio de 2025
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Cinco décadas depois da libertação, causa-me náuseas ver a sociedade tão extremada.

No seu íntimo, a geração revolucionária de Abril continua sentada num trono de virtudes, vendo o mundo por uma suposta imaculada torre de marfim. Autoritária, não aceita descaminhos. Julgando-se dona de verdades incontestáveis e ideologias perfeitas, condena e abjura todos aqueles que não acompanham a procissão. E ofende quem tem a desdita de desalinhar do guião sagrado. Cega, não vê defeitos nas causas que defende. E tudo o que a democracia permitiu de mal, e absolveu, é culpa de quem, antes, não fez o trabalho de casa.

Sempre a sacudir responsabilidades, a velha esquerda saracoteia-se no largo dos heróis e dos mártires da Pátria. Nomeia os mordomos do festim, veste opas garridas, carrega o santo no andor, contrata a banda, encomenda os foguetes que estoiram nos céus. Agita o turíbulo com o incenso da democracia. E na quermesse da tarde leiloa o produto, arrematado por um vintém.


Insconsciente, criou cárceres, inaugurou prisões, onde aferra utopias de amanhãs que nunca cantarão. A geração que envelheceu, isolou-se, num cofre de dogmas, um sacrário de tesouros enferrujados. No feriado, resgatando memórias e façanhas, ainda desce a avenida, de boina espanhola e a estrela do Che, no bolso do dólman maoista, que já viu melhores dias. Rouquejando, clama e esbraceja. E, aos amanheceres, na praça da canção, vai imolando-se num pira de censuras. O amarro aos tempos da legitimidade das ruas foi-lhe fatal. E o corte com a realidade foi um suicídio. À força de insistir em causas datadas, lida mal com o contraditório, especialmente quando ele lhe desagrada ou é desfavorável. Preconceituosa, santifica as suas banalidades e eleva à dignidade o que é vulgar. Inquisidora, alcunha de herécticos os mais críticos do que toma por excelso. Os slogans, as palavras de ordem, as marchas, saltam dos baús e assinalam uma geografia de desertos. Com o seu discurso hermético, vive numa bolha a que só os mais fiéis, lendo o catecismo obrigatório, acedem.

As pagelas que outrora inspiraram multidões num combate assanhado contra o inimigo capitalista perderam cor e brilho. Amarelecidas e desbotadas, vêem o sol nos feriados da catarse nacional. Muitos, à falta de melhor pouso, acobertam-se hoje em espaços moderados, mas sem convicção, espreitando quimeras vãs. E votam para uma democracia representativa que jocosamente maltratam. Mas sempre ranzinzas e zangados. Nunca perdem a ideia.

Das novas direitas, igualmente radicalizadas, com muito que se lhes diga, cuidarei depois.

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Publicado em Opinião