Desventuras

A política portuguesa é um lodaçal onde convivem, como bons amigalhaços, grupos políticos e profissionais que, revezando-se, há muito dominam o aparelho do Estado e capturaram os seus interesses.

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  • 22:31 | Sábado, 23 de Maio de 2020
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Na vida pública, só se dá nas vistas, seguindo por um de três caminhos. Pelo mérito, que dura, pela excentricidade, que cansa ou pelo compadrio, que mete nojo.

Ventura escolheu dois amores. O futebol e a política. Dois mundos tenebrosos, propícios a dinheiro fácil, a desafios tentadores, a negócios mal lavados. Como tantos outros, não resistiu a essa contaminação.

Como paineleiro, era impertinente, jocoso, trocista, chegando a humilhar os adversários. Era um personagem que se destacava mais pela poeira que levantava do que pela substância do que dizia. Fazia umas palhaçadas, largava umas graçolas. Chegava a ser bronco.


Da poderosa televisão, o homem fez o púlpito ideal, o ambão perfeito. Daí falou ao povo e, empoleirado às costas do futebol, criou um partido, ao que parece com umas patranhas pelo meio. E fez-se deputado.

Já eleito, deu-lhe para arranhar as costas de gente habituada ao conforto das estofadas poltronas, ao silêncio fino e grato dos assessores. Fez umas intervenções que irritaram as consciências de esquerda, por tradição, dona da ética, e que profanaram a democracia. Acontece, porém, que o regime não é uma vaca sagrada e acredito que, de vez em quando, lhe fazem bem umas valentes sacudidelas para ver se endireita e se dá ao respeito.

Como político, tornou-se uma voz incómoda, chata, tipo “cão que não larga o osso”, mas as vozes embaraçosas fazem parte. Respeitando as regras democráticas, só por incomodar os sultões e os califas do rectângulo vale a pena.

É um traquina, que tem o mérito de agitar os instalados e quebrar a monotonia do bafiento parlamento, feito um altar de múmias sonolentas, umas que dormem a sesta e dão uma espreitadela no “facebook”, outras que pintam as unhas e melhoram a maquilhagem. Ventura não faz mal a uma mosca. Encontrou um nicho no mercado dos votos e tratou de o explorar até à exaustão, só isso. Mesmo pisando linhas vermelhas, faz o seu caminho e trata da sua vidinha. Está no seu direito. Como eu estou no direito de não gostar das suas ideias. Mas sei que muito do que ele diz da boca para fora é repetido entre dentes por muito bom chefe de família. Verborreia que muita gente séria gosta de ouvir, mas tem receio de repetir.

Dizer o que se pensa e não convém, tem um preço normalmente caro.

A política portuguesa é um lodaçal onde convivem, como bons amigalhaços, grupos políticos e profissionais que, revezando-se, há muito dominam o aparelho do Estado e capturaram os seus interesses. Consonantes no essencial, conflituantes no acessório. Os tentáculos do polvo são longos, chegam longe e abraçam famílias políticas distintas. Por isso, está tudo bem e a “coisa” rola.

Instalados e confortáveis, há os intocáveis ressequidos, os proprietários da verdade e da razão que alimentam uma corte de dependentes. A classe política não se renova, perpetua-se, são os mesmos de sempre. Os apelidos sonantes e os nomes de família são porta de entrada para lugares de topo. Venham os cônjuges, os filhos, os primos. No governo, nas empresas públicas e participadas, na banca e nas operadoras. São as dinastias republicanas, no seu esplendor.

Esta endémica podridão, que as elites não querem ver, é fertilizante para os ódios do sr. André e

dá gás às suas maluqueiras.

Posto isto, não sei se foi boa ideia afastar Ventura do espaço dos comentaristas. Melhor, seria deixá-lo à solta, entretido com as suas diatribes. Com jeitinho, em breve, ficaria a falar sozinho.

Até porque urinamos todos da mesma cor.

Mas, atenção aos homens do leme. Quando se cala uma voz, nasce um mártir.

E esta inesperada condição cai que nem ginjas no putativo candidato presidencial.

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Publicado em Opinião