A liberdade de expressão que se confunde com delito de opinião

Hoje a censura não é uma coisa tão visível porque anda mimetizada e disfarçada de muitas formas e feitios, mas ela anda por aí. Hoje as técnicas usadas pelos vários poderes são mais sofisticadas.

  • 23:48 | Quinta-feira, 13 de Fevereiro de 2020
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Em 1787 Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos da América, escrevia “Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não hesitaria por um momento em preferir esta última.”

Jefferson estava implicitamente a referir-se à liberdade de expressão, à necessidade imperativa de uma imprensa livre como forma de consolidação de um regime político democrático.

Apenas com o acesso a uma informação plural, fidedigna e sem censura os cidadãos podem tomar boas decisões e participar na vida política de uma forma plena.


Uma verdadeira democracia não consegue sobreviver muito tempo sem uma imprensa livre.

Por esta razão o escritor, jornalista, ex-político, e também Prémio Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa, fala que “a democracia tem que ser tratada com muito cuidado”.

No actual contexto político e social direi mesmo que todos os cuidados serão poucos.

Na cidade-Estado de Atenas, berço da democracia, antes da imprensa existiu a Pnix. Que não era mais que um espaço de debate e liberdade de expressão. Na Grécia não existiam jornais, nem jornalistas. Porém, apesar de incipientes, foram os Gregos a darem os primeiros passos, para aquilo a que hoje apelidamos de imprensa vulgarmente chamada de média.

Em Portugal, na segunda metade do século XIX, Eça de Queirós, que para além de escritor ocupou alguns cargos políticos – entre os quais o de administrador do concelho de Leiria – foi também jornalista.

Nesta sua qualidade Eça escreveu que era “grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os actos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença de outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo respeito do direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes.”

Estas palavras de Eça continuam válidas porque esta deveria ser a função do jornalismo.

Porém nos últimos anos a promiscuidade entre Estado, poder político e económico desvirtuaram a ideia de um jornalismo e dos média livres.

Os grupos económicos que, hoje se resumem quase à Impresa e à Cofina, dominam a comunicação social utilizando os seus meios para veicular a defesa dos seus interesses comerciais ou políticos.

No que diz respeito à imprensa local ou regional o panorama é ainda mais negro face à quase dependência das Autarquias.

E é através destes expedientes que conseguem manter um modelo de negócio que passa por uma crise profunda na sequência da revolução digital.

Hoje o poder de comunicar ultrapassou os meios de comunicação convencionais. Este deixou de estar na mão dos média e dos jornalistas.

Hoje vivemos um tempo diferente. Muito diferente.

Vivemos na era da revolução digital, nomeadamente das redes sociais, que permitiu que milhões de pessoas tornassem públicas as suas opiniões extravasando o simples espaço da sua casa, do café, da família ou dos amigos. E tudo isto apenas à distância de um clique.

Esta revolução permitiu a democratização da comunicação e da informação contudo este processo acaba por ter sempre o reverso da medalha.

Hoje, através das redes sociais, com facilidade, rapidez e de forma exponencial é possível propagar, em poucas uma ”fake news” que, não raras vezes, consegue passar por uma notícia verdadeira.

Ninguém tem dúvidas que as “fake news” minam todos os dias o normal funcionamento da democracia.

Eça de Queirós apesar de não dispôr da internet, de blogues ou de redes sociais incomodou muita gente com a sua escrita, sobretudo o poder político.

Nessa época Eça de Queirós, em conjunto com outros escritores contemporâneos, assinou um manifesto que apontava para a necessidade de “refletir sobre as mudanças políticas e sociais que o mundo sofria, de investigar a sociedade como ela é e como deverá vir a ser, de estudar todas as ideias novas do século e todas as correntes do século.”

Esta era uma das suas preocupações. As preocupações do seu tempo que continuam a ser as preocupações dos novos tempos. A necessidade de uma imprensa livre que apenas pode existir com liberdade de opinião e de expressão.

Mas regressando atrás, a um tempo onde sobressaia a escrita de Eça de Queirós que se mostrou um observador atento e perspicaz da sociedade do seu tempo. A sua força era a força da palavra escrita. Foi desta forma que lutou contra aquilo que considerava ser “a ferrugem nacional”  aquilo a que hoje podemos chamar de “comodismo nacional” que vai mantendo e alimentando o “establishment” de forma a que tudo continue na mesma.

Eça de Queirós pensava e escrevia livremente, por isso, não fugiu às regras do seu tempo – que não são muito diferentes das do nosso tempo – e foi silenciado.

Mas Eça não era homem de se deixar vencer. Em parceria com Ramalho Ortigão fundou a revista “As Farpas”. Esta publicação tornou-se, na época, uma forma inovadora de jornalismo assente nas ideias com um enfoque nas questões sociais e culturais.

Numa das suas edições Ramalho Ortigão deixou um aviso claro à navegação – leia-se regime político – quando escreveu que “ o País, concordando inteiramente com as nossas opiniões sobre a ignorância geral e sobre os falsos meios que até hoje têm sido empregados para organizar o ensino, exproba às Farpas o desprezo em que elas têm sempre tido os problemas governativos, contribuindo assim para manter no público a indiferença política que a referida folha considera a principal causa da corrupção portuguesa.”

Uma visão do País não muito diferente do Portugal dos novos tempos.

No que diz respeito à censura os tempos de hoje também não são muito diferentes de outros tempos.

Hoje a censura não é uma coisa tão visível porque anda mimetizada e disfarçada de muitas formas e feitios, mas ela anda por aí. Hoje as técnicas usadas pelos vários poderes são mais sofisticadas.

Vale a pena pensar que vários comentadores políticos, os antigamente chamados “opinion makers” a que hoje chamo de “influencers”, são advogados, consultores ou gestores de  importantes sociedades de advogados, de consultoras ou empresas em que, não raras vezes,  se cruzam os interesses do estado e dos grupos económicos.

Não existirão dúvidas que os comentários não serão isentos podendo estar mesmo subjacentes a uma agenda de interesses pouco claros. E estou-me a lembrar apenas de alguns comentadores que saltitam entre os negócios e a política como António Lobo Xavier, Jorge Coelho, José Miguel Júdice, Luís Marques Mendes, Luís Nobre Guedes ou Paulo Portas.

Hoje o livre pensamento continua a pagar um preço muito elevado. Os arautos da democracia são os primeiros a confundir liberdade de expressão com delito de opinião.

Hoje o silêncio compra-se com perseguições nos locais de trabalho, às empresas, com empregos ou “tachos”.

Hoje são poucos os que conseguem resistir mas como escreveu o poeta Manuel Alegre “Mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não.”

Apesar dos muitos constrangimentos, hoje, ainda existem aqueles que não calam e que se batem, todos os dias, pela liberdade de expressão em nome de uma verdadeira e efectiva democracia.

Na semana em que o Rua Direita cumpre sete anos de existência e faz um “refresh” no seu site é o momento de fazer o elogio a este espaço que se assumiu como um espaço livre de opinião e de debate livre. Uma palavra especial ao meu amigo, Paulo Neto, pela sua capacidade inigualável de persistência e resistência na busca constante de um Portugal mais livre, mais justo e mais plural.

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