9 de maio de 1945: UM COLAPSO GÉMEO

Os crimes de guerra a ocorrer com o massacre da Ucrânia por parte do ditador russo, mais não são que um monstruoso ato falhado: ao destruí-la tenta destruir o que é genuinamente seu, a tirania que constitui a sua essência. Desnazifica-se a si próprio ao afirmar fazê-lo onde ele não está.

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  • 17:55 | Segunda-feira, 16 de Maio de 2022
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Em 2 de maio de 1945, o exército vermelho chegou Berlim e hasteou a “sua” bandeira no topo do Reichstag, a DEM DEUTSCHEN VOLKE, antecipando-se à incúria das tropas aliadas. Com o colapso do nazismo, esse dia iria testemunhar o colapso final de um dos períodos mais negros da historia da humanidade e o dia 1, vitorioso, do segundo período de um outro colapso já iniciado em 1921*1, e cujo desenlace final teve lugar em novembro de 1989. Estes dois colapsos são produtos gémeos gerados no  mesmo ventre político e social e apesar da vitoria celebrada a 9 de maio.

Em 2003, em estadia profissional em Potsdam, desloquei-me a Berlim (Potsdam é, para Berlim e passe o exagero, como Cascais para Lisboa). Depois de atravessar a Porta de Brandemburgo, parei pensativo frente à DEM DEUTSCHEN VOLKE alemã, num rememorar da história desse ano e antes de acabar de palmilhar toda a longa e definidora avenida 17 de junho, ano e data que me são particularmente significativas.

O período da história que nesse dia se continuou, foi em quase tudo semelhante àquele que nesse dia colapsara, a saber:


1. Nos seus desígnios históricos através da ambição de um poder global, mesmo que por processos vagamente diversos.

2. Pelo seguidismo violência, tirania, escravidão e terror sobre o seu corpo nacional e europeu. Com campos de trabalho forçado e de extermínio, mesmo que este não assumido.

3.   Com vítimas inocentes escolhidas como alvo selecionado: no primeiro pelo extermínio de milhões de judeus, no segundo pelo extermínio de milhões de camponeses, também de judeus e a que se seguiram as elites nacionais quase sempre ligadas a falsos delitos de opinião.

Ouçamos o que nos legaram alguns dos que viveram e se confrontaram no corpo e na alma, com estas duas fraturas civilizacionais.“Na terra há dois grandes revolucionários: Stalin e o nosso líder. Os comunistas alemães que metemos no campo de concentração também foram encarcerados por vós no ano trinta e sete*2. Se calhar amanhã ireis adoptar a nossa experiência. As nossas mãos, tal como as vossas, não têm medo de se sujar. Quando nos olhamos na cara um do outro, olhamos não só para uma cara odiosa, mas também para o espelho. Sei que sou para si um espelho cirúrgico. Espelho? Mas o que se passa consigo? É doido? Stalinegrado vai assentar-lhe as ideias. Será que não estais a reconhecer-vos a vós próprios, à vossa vontade? Pareçe-vos que nos odeiam, mas é uma ilusão. Estão a odiar-vos a vós próprios e não a nós. Não consigo perceber em que consiste a causa da nossa inimizade. Somos uma forma diferente da mesma essência. Estamos a construir duas casas, elas devem erguer-se lado a lado” *3.

“Toda a história da Rússia é uma sucessão de tiranias: dos tártaros (esfola um russo e encontrarás um tártaro, diz o ditado), dos czares e príncipes moscovitas. Cinco séculos de despotismo nacional, de escravidão franca e enraizada. Todos só souberam fazer uma coisa: esmagar. Esmagar os seus súbditos como escaravelhos e vermes. Mas, lembro-me, não era assim que argumentavam os nazis? Em 1945, nas nossas prisões havia apenas prisioneiros russos. Passavam por lá em cardumes enormes e densos como os arenques no oceano. Fluía a corrente de todos aqueles que tinham estado na Europa. Estaline receava que eles trouxessem a campanha da liberdade europeia. Nós, que introduzimos armas em Buchenwald, somos agora as ovelhas negras porque ficámos vivos. Com os prisioneiros alemães fomos todos para os campos de trabalho forçado. Queimavam a alma dos presos, seriam mais humanos do que aqueles SS que colecionavam a pele e os cabelos dos que eram mortos? Na maior parte da sua história, a Rússia nunca conheceu a fome. O Arquipélago viveu viveu dezenas de anos sob o peso de uma fome atroz. Havia brigas pelos rabos de arenque apanhados no caixote do lixo. Todos os dias saíam entre 100/110 homens para abrir sepulturas. Nos meses favoráveis de 1949, morriam 60/70 pessoas por dia em Ekibastus. Trinta e um anos depois da revolução, quatro depois da guerra, três depois de Nuremberga. Quando a humanidade já respirava com alívio “isto não se repetirá”*4.

Eis-nos que em pleno século XXI, um ditador pária pretende reproduzir idêntico cenário europeu, quiçá global, gizando iguais desígnios, por processos semelhantes e à custa de valores reconhecidos e desejados por aqueles a quem o quer impor e ele os considera um risco para o seu regime.

Os crimes de guerra a ocorrer com o massacre da Ucrânia por parte do ditador russo, mais não são que um monstruoso ato falhado: ao destruí-la tenta destruir o que é genuinamente seu, a tirania que constitui a sua essência. Desnazifica-se a si próprio ao afirmar fazê-lo onde ele não está. O espelho já foi identificado há muitas décadas, como estas testemunhas históricas evidenciam. Bom seria que um  capaz e firme psicanalista o colocasse “frente a ele”.

Saudosista de um tempo que foi seu, que não volta mais, porque de todo indesejado pelo seu povo e por aqueles que o rodeiam. Ficará só, rodeado por um mundo que o odeia e onde não tem moralmente nenhum lugar que possa acolhê-lo.

 

 

*1. Conhecida como a Grande Fome que terá dizimado cerca de 5 milhões de russos. Teve origem nas consequências da I guerra mundial, na revolução bolchevique de 1917, na violenta guerra civil que esta gerou e como agravantes a má gestão da administração, a coletivização forçada, o saque por parte dos bolcheviques e, em parte, por secas intermitentes. Em alguns locais, os russos foram forçados ao canibalismo. Processo semelhante ocorreu em 1958 com o Grande Salto em Frente nos campos e na industria durante  a revolução Maoista. Levou à fome 18 milhões de chineses que, segundo outros autores, terão sido quase sessenta milhões.

*2. 1936-1938: 1937 o chamado ano do Grande Terror Stalinista. Cerca de 1.000 russos terão sido assassinados por dia, cujo total terá ficado próximo de 1.400.0000. Teve uma segunda vaga em 1948, dirigida sobretudo a intelectuais judeus. O seu corifeu maior viria a morrer em 1953.

*3. Vassilli Grossman, Vida e Destino, 2016, D. Quixote.

*4. Aleksandr Soljenitsin, Arquipélago Gulag, 2017, Porto Editora.

 

 

(Fotos DR)

 

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