Saramago merecia-o?

    Raramente escolhemos a hora da morte. José Saramago amava a vida e já num fim pressentido fincou-se a escrever as ideias que naquela cabeça genial germinavam para nos legar, ainda, uma derradeira história. A de artur paz macedo, um anónimo funcionário de uma fábrica de armas, separado de sua mulher felícia — isso […]

  • 0:02 | Segunda-feira, 20 de Outubro de 2014
  • Ler em 2 minutos

 
 
Raramente escolhemos a hora da morte. José Saramago amava a vida e já num fim pressentido fincou-se a escrever as ideias que naquela cabeça genial germinavam para nos legar, ainda, uma derradeira história. A de artur paz macedo, um anónimo funcionário de uma fábrica de armas, separado de sua mulher felícia — isso mesmo, os nomes não levam maiúsculas, só nos dizem algo sobre os seus portadores — que, e de repente, depois de ver um filme baseado na obra de malraux, l’espoir, sobre a guerra civil espanhola, fica perturbado com uma sabotagem política de bombas que não explodiram. Decide requerer autorização ao administrador-delegado para investigar os arquivos de produções belona s.a…. E o livro acaba aqui, num terceiro capítulo.
Seguem-se-lhe umas notas diarísticas do autor, do tipo “o livro, se chegar a ser escrito, chamar-se-á Belona, que é o nome da deusa romana da guerra” … para mais à frente acrescentar: “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’ proferido por ela (Felícia). Um remate exemplar.”
Mas a morte, caprichosa, nem os Nobel poupa… Saramago partiu antes de dar conclusão à obra.
Depois de 2010 tudo ficou suspenso, no ar, como as 22 páginas escritas… Agora, em 2014, a Porto Editora publica-as. Acrescenta-lhe os tais extractos do diário ou “Cadernos”. Junta-lhe um texto explicativo de Fernando Gómez Aguilera intitulado “Um livro inacabado, uma vontade firme”. Acrescenta-lhe, à laia de remate encomendado um texto chamado “Também eu conheci Artur Paz Semedo”, da autoria de Roberto Saviano, num reconto a seu modo, sobre homens, escrita, atitudes e morte. Para “encher”, foram buscar desenhos de Günter Grass, sim o colega Nobel alemão, de temática nem sempre ajustada ao conteúdo, como se fossem para ali transplantados com a única justificação de serem carvões tétricos, onde aparecem homens aos esgares, animais de fauces escancaradas e canhões prontos a disparar.
O livro tem direitos de autor “Herdeiros de José Saramago” e é editado pela Fundação José Saramago e Porto Editora, Lda.
Acaba com o título final, “Alabarda, alabardas, Espingardas, espingardas”, tirado de Gil Vicente, da peça “Exortação à Guerra”.
Estes são os factos e a sinopse possível.
A questão: Deveriam 22 páginas ser publicadas? Um esboço inacabado de um livro? Seria esta a vontade do seu autor? Ele que, prolífico e criativo, fazia de cada obra um monumento? Este acto homenageia Saramago ou engana os leitores? Respondam-me que só compra quem quer. De acordo. Mas em todo o mundo há milhões de leitores que compram em função do nome do autor.
A minha conclusão: É uma desilusão, esta iniciativa. Mas mais do que isso, conjecturalmente, pode parecer, também, um mero artifício de venda que, provavelmente Saramago nunca admitiria.
Pela minha parte, vou apagar os 15€50 (não são significativos) e vou esquecer estas 22 páginas, guardando sempre comigo “Levantado do Chão”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Jangada de Pedra”, “Memorial do Convento”, “O Evangelho segundo Jesus Cristo” ou “Ensaio sobre a Cegueira”… as obras onde o génio lampeja em toda a sua glória, Alabardas…é, talvez, um exemplo do que nunca deveria ter sido publicado. Um mero artifício comercial.

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Editorial