O aspecto não dói…

  Ergui-me pela alba, o que é costume velho de fraco dormidor. Cumpridas as rotinas e com um sol já pouco clemente, a questão: onde ir, como passar o dia? Perder meia hora a ponderar um quarteirão de possibilidades e esbarrar numa inércia que sussurra: A lado algum… Pega num livro, ouve música, vê um filme, fica à […]

  • 11:16 | Domingo, 13 de Julho de 2014
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Ergui-me pela alba, o que é costume velho de fraco dormidor.
Cumpridas as rotinas e com um sol já pouco clemente, a questão: onde ir, como passar o dia? Perder meia hora a ponderar um quarteirão de possibilidades e esbarrar numa inércia que sussurra: A lado algum… Pega num livro, ouve música, vê um filme, fica à fresca, as estradas estão quentes e com o movimento dos veraneantes de fim-de-semana, os restaurantes, apesar das dificuldades, ainda enchem aos domingos, a temperatura vai subir para os 30º e…  mais uma dúzia de assisadas razões. Com tanto atrito, nada a fazer.
À entrada da pastelaria encontrei uma colega do liceu.
— Olá, estás boa?
— E tu? sempre com bom aspecto…
— Tu também estás, belíssima.
— Pois, mas as maleitas estão cá dentro.
— Pois é, eu também as sinto.
— Olha, cara alegre e bom domingo!
Cumpriu-se a função fática da linguagem. Comunicar sem dizer nada. O pior é que não me lembrava sequer do nome dela. Ocorreram-me três possibilidades mas não arrisquei nenhuma. A antiga colega, que fora uma lindíssima teen-ager, estava maltratadita pelo tempo e, no rosto dela juncado de rugas, vi o reflexo do meu. Civilizadamente trocámos dois beijinhos educados, gentis e despedimo-nos com a afabilidade de quem se vai voltar a encontrar num Lar de 3ª idade daqui a década e meia…
Lembrei-me do meu avô Hilário que no final da sua vida sofreu um paralisante AVC que o obrigava a caminhar, com dificuldade, amparado a alguém e a uma bengala. Para o homem dominioso que fora, esta decrepitude prematura seria pesada humilhação. Ainda para mais, aferventado de seu sangue napolitano e habituado a uma vida sem contrariedades…
Quando eu, muito ganapinho o acompanhava ao Café Império, cruzávamo-nos com pessoas que se detinham, corteses para o cumprimentar, de cabeça descoberta:
— Que bom e saudável aspecto, Sr. Dr. Hilário…!, proferiam.
Meu avô ensombrava o semblante e respondia:
— Pois sim. Obrigadinho lhe fico. O aspecto não dói…
Hoje, também, à porta da pastelaria, a minha antiga colega do liceu e eu, estávamos ambos com muito bom aspecto…, a tal “coisa” que não dói…!
 

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Publicado em Editorial