E porque não “O Doutor Jivago”?

Lembro-me desde criança de ver “O Doutor Jivago” numa estante de minha casa. É um livro de 600 e tal páginas, com uma capa cinzenta e vermelha onde se vê um desenho – de autor não identificado – de três homens olhando em direcções opostas e vestidos como operários. Edição da Bertrand, curiosamente não datada […]

  • 13:02 | Terça-feira, 25 de Março de 2014
  • Ler em 3 minutos

Lembro-me desde criança de ver “O Doutor Jivago” numa estante de minha casa. É um livro de 600 e tal páginas, com uma capa cinzenta e vermelha onde se vê um desenho – de autor não identificado – de três homens olhando em direcções opostas e vestidos como operários.
Edição da Bertrand, curiosamente não datada mas que creio ser de finais da década de 50, li-o muito jovem – tinha o mau hábito de ler os livros todos que apanhava – e como é compreensível não o entendi, como aconteceu com centenas de outras obras em infante lidas.
Repego nele. Há neste livro muita coincidência relevante, à luz do meu olhar de agora. A maior é ter sido prefaciado pelo “meu” Aquilino Ribeiro, tal facto se tornando, para mim, motivo de um reganho de interesse. De seguida, perceber que a tradução para português foi obra do grande Augusto Abelaira. De que língua terá partido? Suponho que do italiano, pois a 1ª edição foi feita em Itália e há uma nota: “Copyright by Giangiancomo Feltrinelli Editore Milano”.
Finalmente, a XVIIª parte do romance e seu epílogo, dá-nos os poemas de Iuri Jivago. 43 páginas de poemas, obviamente do Boris Pasternak, que foram traduzidos por um jovem poeta que começava a pontificar nas letras portuguesas da época: David Mourão-Ferreira.
Depois, se atentarmos nas palavras de George Steiner, in “Linguagem e Silêncio, Gradiva, 2014, mais motivação concitamos:
“Não conseguimos conceber um Estado fascista abalado por um simples livro – mas Doutor Jivago causou uma das maiores crises na existência recente da intelligentsia na Rússia comunista”
(…)
“Por fim, Rühle ocupa-se de Pasternak. Vê em Pasternak a verdadeira voz da Rússia, e uma visão que prevalecerá para além das tiranias do momento. Concorda com Edmund Wilson ao descobrir nas figuras de Lara e Jivago uma objecção sem resposta ao historicismo e ao determinismo contrário à vida da ideologia comunista. O simples facto de Pasternak ter podido conceber a revolta íntima do amor de ambos enquanto vivia na União Soviética demonstra que o espírito russo continua vivo sobre a crosta de gelo da disciplina partidária (*). Pasternak foi um dos primeiros a lerem o poema do adeus que Essenine escreveu com o próprio sangue (**). Teve conhecimento da célebre nota suicida de Maiakovski (***). E em Doutor Jivago faz ouvir a sua condenação do desprezo soviético pela existência individual que os poetas seus companheiros tinham denunciado com a tragédia das suas mortes.”
Este romance aparece pela 1ª vez posto à venda em Milão, no dia 22 de Novembro de 1957. Nesse dia esgota-se a 1ª edição de 6.000 exemplares. No dia seguinte há 20.000 pedidos…
As 5 páginas de prefácio escritas por Aquilino, assim se rematam:
“ Ortodoxo ou não em matéria de doutrina revolucionária, é inegável que Boris Pasternak, escritor e poeta, saiu aos 70 anos dos limbos da obscuridade em que jazia com um livro maravilhoso, que honra as letras e o pensamento contemporâneo.”
Boris Pasternak nasceu em Moscovo e foi amigo de Tolstoi, de Rilke e de Scriabine. Vencedor do Prémio Nobel em 1958, exactamente no mesmo ano em que Aquilino publica “Quando os Lobos Uivam” que tão perseguido é pela Censura salazarista, constituindo-o arguido por crimes de ofensa ao Estado e em que o professor da FLUL, Vieira de Almeida encabeça uma centena de signatários que formulam uma proposta de candidatura de Aquilino ao Prémio Nobel de Literatura.
Querem mais motivos para uma revisitação da obra?
Leiam, pela Vª rica saúde!
 
 
________________________________________________________________
Notas minhas:
(*)
É curioso perceber que também outro enorme escritor russo, Vassili Grosman tem a mesma concepção expressa nas suas obras “Vida e Destino” e “Tudo Passa”, recentemente editadas pela Dom Quixote.
(**)
“Nesta vida morrer não é nada de novo,/ Mas viver também não é muito mais novo” (…)
(***)
A todos
De minha morte não acusem ninguém, por favor, não façam mexerico.
O defunto odiava isso.
Mãe, irmãs e companheiros, desculpem-me, este não é o melhor método (não recomendo a ninguém), mas não tenho saída.
Lilia, ame-me.
Ao governo: minha família são Lilia, Brik, minha mãe, minhas irmãs e Verônica Vitoldovna Polonskaia.
Caso torne a vida delas suportável, obrigado.
Os poemas inacabados entreguem aos Birk, eles saberão o que fazer.
Como dizem:
caso encerrado,
o barco do amor partiu-se na rotina.
Acertei as contas com a vida
inútil a lista
de dores,
desgraças
e magoas mútuas,
Felicidade para quem fica.
Vladimir Maiakovski

Gosto do artigo
Publicado por
Publicado em Editorial