Loucura

Aquele a quem chamamos louco afastou-se de nós, porque não encontrou no nosso universo comum nenhum lugar para fazer a sua pergunta: rejeitámo-lo porque já não sentíamos nele um eco da nossa existência, porque ele nos relançava para um espaço-tempo insuportável e no entanto familiar.

  • 10:56 | Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2021
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Esta palavra evoca um mundo confuso.
O caos de uma razão vacilante.
Os sobressaltos de um pensamento que perde os seus limites e ri demais ou desespera sem motivo.
O louco é um violador dos limites (um transgressor da norma).
E a loucura do mundo?
Há o louco que se queixa do mundo.
E o mundo que se queixa do louco.
O louco ultrapassou certos limites e pratica o intolerável.
A sociedade pode ser acusada de loucura, na medida em que tolera e favorece certas formas de destruição, ultrapassou todos os limites e pratica o intolerável…
A loucura será uma relação de tensão irredutível entre as produções
(palavras, actos, textos, maneiras de estar no mundo) de um indivíduo e os critérios de inteligibilidade de um grupo (familiar, profissional, social, cultural):
relação de tensão da qual os protagonistas, seja qual for o lado em que se situem, são parte interveniente e responsável
—» o distanciamento radical
—» o fosso sem fundo (o abismo)
—» a estranheza insuportável
— » a loucura é uma relação
A escrita pode aproximar-se do conceito de loucura, rodeá-lo, abordar alguns loucos, mas essa confrontação pode gerar vibrações desarmónicas e divisões tensas e conflituosas.
Os surrealistas, teóricos da “arte bruta”, foram descobridores de loucos literários, mas o verdadeiro louco fica à margem do debate, excluído pela irredutibilidade do seu isolamento.
Esta situação de inacessibilidade – sinal de subversão para uns, de associabilidade aceitável para outros – vulnerabiliza-a; porque sair do inteligível é correr o risco de se tornar em objecto dos seus códigos, um lugar privilegiado de julgamento e de fruição.
Logo, a escrita pode abordar a loucura, mas com a condição de unir o ininteligível ao inteligível, e de lho submeter.
A escrita, sob o peso da loucura, seus excessos e rupturas, torce-se e corrói.
O leitor é dolorosamente solicitado, depois submerso por estes ruídos parasitas: ouve mais do que lê, porque depara com uma inteligibilidade que desperta nele um eco assustador.
A palavra passa a ser a voz arcaica que clama a imprecação que ameaça, o bramido insuportável do Outro.
A escrita da loucura é-nos intolerável porque mostra o domínio do Outro actuando, exercendo-se de maneira absoluta, sem a ligação das palavras tornadas impotentes, e a protecção do sentido comum em estado de desagregação.
Aquele a quem chamamos louco afastou-se de nós, porque não encontrou no nosso universo comum nenhum lugar para fazer a sua pergunta: rejeitámo-lo porque já não sentíamos nele um eco da nossa existência, porque ele nos relançava para um espaço-tempo insuportável e no entanto familiar.
Esta tensão entre os lugares do possível e o não-lugar do inimaginável, entre o simbólico e o não-situado, entre a partilha e o isolamento radical, constitui a loucura.
Não-lugar, atópico: assim nos surge, pois, a escrita louca.
Para reencontrar um lugar no quadro da nossa inteligibilidade, para se situar no nosso espaço físico de outro modo que não o de um objecto perseguidor, a escrita louca dispõe de três caminhos:
O primeiro é indirecto, passivo, e acontece a despeito do autor:
é o caminho da interpretação.
Os outros dois são activos e requerem do autor um trabalho psíquico e uma técnica complexa:
é o testemunho da loucura, ou a criação literária.

 

 


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