De texto em texto

Fui encomendar “A Pele”. Esgotada há muito em edição dos Livros do Brasil. Andam os editores distraídos e entretidos a pôr cá fora o “prêt-à-consommer”…

  • 16:49 | Quinta-feira, 18 de Março de 2021
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“Todo o texto se constrói como um mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro texto.” – J. Kristeva

“O intertexto é a percepção, pelo leitor, das relações entre uma obra e outras que a precederam ou seguiram.” – M. Riffaterre

 


Partindo destas duas asserções, acabava eu a leitura, compungido como sempre que estou a chegar ao epílogo de uma obra de fruição, de “Kaputt”, de Curzio Malaparte, um género ainda quase novo em que a reportagem e a ficção se entrelaçam de forma admirável, passei ao Milan Kundera, “um encontro”, onde no capítulo IX, “A Pele” – Um arqui-romance, deparo com uma lucidíssima crítica a “Kaputt” e a esta última obra. Ambas acerca e escritas durante a IIª Guerra Mundial, despertam em Kundera esta reflexão final:

“O momento da guerra que chega ao fim ilumina uma verdade tão banal quanto fundamental, tão eterna quanto esquecida: face aos vivos, a superioridade numérica dos mortos é esmagadora, não só a dos mortos do fim da guerra, mas a dos mortos de todos os tempos, os do passado, os do futuro; cientes da sua superioridade, escarnecem de nós, escarnecem desta pequena ilha de tempo em que vivemos, deste minúsculo tempo da nova Europa, da qual nos dão a entender toda a sua insignificância, toda a sua fugacidade.”

Fui encomendar “A Pele”. Esgotada há muito em edição dos Livros do Brasil. Andam os editores distraídos e entretidos a pôr cá fora o “prêt-à-consommer”…

Outro capítulo, intitulado “O Amor na História que se acelera”, remeteu-me para P. Roth e “Professor de Desejo”, que felizmente estava em casa, em stand-by à espera da sua hora. E Kundera escreva sobre esta obra onde Roth deseja “conservar o tempo passado no horizonte do romance”:

Se dantes, a História avançava muito mais lentamente do que a vida humana, hoje é ela que vai mais depressa, que corre, que escapa ao homem, de tal modo que a continuidade e a identidade de uma vida podem quebrar-se.

Goethe escreveu “Só apropriando-nos das riquezas dos outros podemos trazer à existência qualquer coisa de grande.

Emerson acrescentou “Em todas as obras de génio reconhecemos os nossos pensamentos rejeitados – regressam a nós com uma certa majestade alienada.

Bloom conclui “O poeta está condenado a aprender os seus anseios mais profundos mediante uma percepção de outros eus.

E Gleize remata: “Le refus du três proche implique la relecture du três loin.

A escrita e a leitura da escrita são percursos sem horizonte nem fim. Actos também perversos, perverso que significa “virado para o caminho errado”, como o pervertido à luz da moral vigente, o que dá este textículo:

A minha perversidade está no trilho que sigo, o do caminho errado. A rota do desvio. E esse é o meu impulso que quero descontínuo e sinto impossível e escuro. Tão escuro que já não vejo a ilusão. Haverá escapatória?

Trair é sair da fila”, Kundera escreveu, acerca da criação…

Os poetas são os hierofantes de uma inspiração inapreendida, os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade projecta sobre o presente.” (Shelley)

A futuridade projecta sobre o presente gigantescas sombras … O poeta canta prediz augura com risco de perdição. O poeta desce ao mundo das sombras temíveis para cantar o futuro. A poesia é a voz do futuro, a poesia é o acto futuro não decifrado pelos que vivem no presente; a especulação do poeta. A poesia é a onda, a vaga enorme que o poeta sulca com risco de se perder. A poesia é o lugar. A poesia é o corpo. A poesia é o corpo que o espírito busca. A poesia é o corpo que o espírito busca na deambulação da alma. O futuro é a inatingibilidade. A inatingibilidade é a força matriz do espírito.

… acho eu hoje. Amanhã não sei…

Talvez O’Neill,

“Quando dizes ‘Poesia’ dizes medo

dizes família tradição classe

e a vida de cão que te esperava

e que é hoje a tua vida a tua ‘transcendente’

vida de cão”

Foi difícil de seguir, este breve percurso? Rematar com Barthes é pacifico (o que quer que isso queira dizer)…

Texto de prazer: aquele que comenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise em relação com a linguagem.

A crise é lixada. Ponto.

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