AR LIVRE
(…)
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
Miguel Torga
Como se sabe, a extinção dos dinossáurios foi provocada pelo impacto de um asteróide, ou, segundo outra teoria, também por “múltiplos impactos” de meteoróides menores.
No caso do nosso dinossáurio autárquico, no poder camarário durante 24 anos seguidos e regressado há quatro anos, após o falecimento do seu antecessor, Almeida Henriques (por quem parecia nutrir uma profunda animosidade, apesar de serem do mesmo partido, notória na sua recusa em receber das mãos do malogrado edil o “Viriato de Ouro” que aquele lhe atribuiu, dizem as más línguas que por lhe ter negado, baseado em parecer jurídicos, o subsídio de reintegração que solicitara), a extinção deveu-se, sem dúvida, à promessa da “nova energia” do candidato do PS, João Azevedo.
Contudo, esta vitória sobre o absolutismo sufocante que condenou Viseu a décadas de marasmo, também se deveu ao impacto de um meteoróide menor, o Bloco de Esquerda (BE) que decidiu não apresentar candidato à Câmara Municipal. Correndo o risco do voto por arrastamento (toda a campanha e a sua cobertura mediática é focalizada apenas nos candidatos à Câmara, e muitos eleitores votam para a Assembleia Municipal no mesmo partido que escolhem para a Câmara),o BE investiu toda a propaganda na candidatura à Assembleia Municipal onde, desde há vinte anos, sempre conseguiu eleger deputadas(os), deixando, assim, a via aberta para um eventual “voto útil” (que a maioria das vezes não passa de uma chantagem da bipolarização do “centrão”) dos seus eleitores mais fiéis, que, tal como uma boa parte dos cidadãos do nosso concelho, não suportariam viver mais quatro anos de asfixia democrática. Esse sufoco ficou demasiado evidente para quem abria os ouvidos na rua, nas conversas de café e nos locais de trabalho.
Cinquenta anos de governos de direita e, desde 1989, sob o absolutismo do PSD, deixaram Viseu num marasmo político, económico, cívico e cultural pouco compaginável com as aspirações de modernidade de uma população com mais formação académica da juventude, mas sem perspectivas de emprego local, nem de habitação adequada às suas necessidades e possibilidades económicas, nem tão pouco de mais e melhores espaços de sociabilidade comunitária e de acolhimento social na velhice.
Os mais de mil eleitores que votaram no Bloco de Esquerda (BE) para a Assembleia Municipal (AM), certamente que, ao votarem para a Câmara Municipal foram decisivos para a derrota de Fernando Ruas, uma vez que o PS apenas ficou com mais 800 votos do que o PSD.
Claro que o voto no PS foi uma janela de emergência para entrar o ar puro que se augurou poder oxigenar o Rossio. Mas muitos dos que votaram João Azevedo não terão confiança ilimitada numa “energia” que ainda não deu suficientes provas de fogo. Os partidos de esquerda, mesmo fora das autarquias, deverão continuar vigilantes e activos, contribuindo com o seu escrutínio e as suas propostas para aumentar o bem-estar das populações e ajudar a enfrentar os problemas estruturais do concelho de Viseu.
O PCP voltou a não conseguir eleger para a AM (onde teve uma eleita em 2012 e 2017) e o Bloco, pela primeira vez em vinte anos, também não elegeu para a AM, nem conseguiu manter a eleita que tinha na Assembleia de Freguesia de Viseu durante os últimos 12 anos.
Ambos os partidos tinham bons candidatos e os melhores programas locais. Mas ambos sofreram com a dinâmica de perda da esquerda a nível nacional. Sem prejuízo da necessidade de uma reflexão profunda sobre os maus resultados eleitorais da esquerda e da sua incapacidade para romper espaço num tecido social conservador, dominado há séculos por elites tacanhas e reacionárias, agora reforçadas por populistas charlatães.
O Chega para além de eleger um vereador, também elegeu três membros da Assembleia Municipal, apesar da sua eleita no mandato agora findo não ter posto os pés na maioria das sessões deste órgão autárquico, nem tão pouco se ter feito substituir, mostrando assim o desrespeito que têm pelos seus próprios eleitores e pela democracia. De resto, Ventura também faltou a 30 sessões da Assembleia Municipal de Moura, só tendo comparecido a duas, desde que foi eleito em 2021, e não se fez substituir em sete.
Claro que os eleitores do partido de extrema-direita não são muito exigentes, de contrário não votariam num partido com 23 deputados (em 58) que já se cruzaram com a Justiça, desde prostituição de menores, a pedofilia, roubos de malas, casas e caixas de esmolas, ofensas à honra e imagem, falsas declarações em Tribunal, dívidas ao fisco, violência doméstica, cuspir e insultar e agredir pessoas, entre outros actos próprios de “gente de bem”. Sem esquecer o mandatário que foi apanhado a atear incêndios florestais. Ventura, ficou muito aquém do que pretendia obter nestas eleições autárquicas, mas ainda assim ganhou gás suficiente para mostrar-se como o fascista que é, ao defender Salazar e mostrar cartazes racistas e xenófobos, violando assim a Constituição da República Portuguesa. Beneficiou da cumplicidade dos partidos da direita e a complacência do centro. É só ver as políticas desumanas do governo criminalizando os imigrantes e as suas famílias e a prática de autarcas socialistas como Ricardo Leão.
E AGORA, GENTE DE ESQUERDA?…
Os partidos de esquerda são herdeiros de uma história secular de lutas do povo português por liberdade, igualdade e direitos no trabalho.
O PCP, com os seus 104 anos de existência, apesar da progressiva erosão da sua base de apoio, ainda conserva muita influência nos sindicatos e nas autarquias (perdeu 7 câmaras, incluindo 2 capitais de distrito, mas ainda ficou com 12).
O BE, formado por partidos de matriz marxista, comunista e revolucionária, que se souberam congregar com independentes numa nova esquerda não dogmática, defensora do socialismo, foi uma lufada de ar fresco na política portuguesa, mas tem vindo a perder deputados e autarcas.
A demissão da competente e corajosa Mariana Mortágua, face às derrotas eleitorais e às pressões internas e externas, talvez fosse inevitável. Saber ouvir as bases do partido e as críticas dos seus eleitores é um dever de qualquer dirigente. Outra coisa é dar demasiada importância aos comentários de quem teme ou odeia o Bloco e dos ressabiados que surgem agora a dar “conselhos”, mas obliteram as suas próprias responsabilidades.
A estes partidos de esquerda, PCP e BE, cabe organizar a resistência ao neofascismo, não se remetendo demasiado à defesa, podendo até tecer alianças táticas com partidos do centro-esquerda, mas sem ilusões no seu desígnio colaboracionista e capitulacionista (como se viu na sabotagem de Costa à “Geringonça”). Sobretudo, há que dialogar à esquerda, rompendo sectarismos e supremacismos político-ideológicos e juntar forças para apresentar, em Portugal e na Europa, uma alternativa credível ao capitalismo, predador e selvagem por natureza, e unir os povos contra o rearmamento da UE e dos governos europeus (incluindo o português) à custa das pensões, dos salários e do aumento das desigualdades sociais. Talvez os partidos de esquerda devessem começar, a nível local para já, por juntar esforços na acção, pelo menos, uma vez que ideologicamente não estão assim tão afastados.
Stephen Hawking, na sua obra “Breves respostas às grandes perguntas”, diz-nos que “a colisão de um asteróide é algo contra o qual não temos qualquer defesa. A última dessas grandes colisões connosco ocorreu há cerca de sessenta e seis milhões de anos, acredita-se ter morto os dinossauros e voltará a acontecer. Isto não é ficção científica; é uma garantia dada pelas leis da física e da probabilidade.” E acrescenta: “A guerra nuclear continua a ser, provavelmente, a maior ameaça atual à humanidade”.
E para fazer frente à ameaça crescente de guerra na Europa entre potências nucleares e à “catástrofe climática” no limiar da irreversibilidade, não podemos confiar nos partidos da direita e da sua extrema, nem nos do “extremo-centro”, como já se viu na cumplicidade de todos eles com a “economia de guerra” da UE (súbdita da dupla criminosa NATO/EUA) e com o genocídio que o governo terrorista de Israel continua a praticar em Gaza e na Cisjordânia, bem como nos recuos que a nível Europeu têm dado no combate às alterações climáticas.
Como previu Rosa Luxemburgo, em 1916, o dilema continua a ser: “Socialismo ou barbárie!”

Carlos Vieira e Castro