Os cínicos

Um cínico tem várias caras, e, para mal dos nossos pecados, nunca sabemos qual é a que usa. É um tormento, fica a gente com os nervos em franja por tal desdita nos sair na rifa e nos calhar em sorte.

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  • 17:53 | Segunda-feira, 27 de Outubro de 2025
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Os cínicos são perigosos. Quando falo com um cínico, tomo-me de cuidados. Viro-o do avesso, olho-o pelo lado do forro, descoso-lhe as bainhas, mudo-lhe os virados, num esforço maçador de o entender. Mas sempre com receios. No fim da manobra, fico sempre desconfiado. Por reconhecer que nem assim consigo, que é esforço inútil. Fica sempre um pingo de dúvida. Será?, não será?

Um cínico é um cofre com muitos segredos, um artista na lida de esconder. Um crosto. Não tem as características positivas do mordaz e do sarcástico, expressões agradáveis da ironia subtil e inteligente, ainda que cáustica.

Um cínico é, por natureza, opaco, o extremo mais oposto da transparência. Porque não exprime opinião, refugiando-se em desculpas e afazeres, é difícil confiar num cínico. Saber o que ele ajuíza é quase impossível. Tarefa talvez só ao alcance de gente da mesma família.


Um cínico tem várias caras, e, para mal dos nossos pecados, nunca sabemos qual é a que usa. É um tormento, fica a gente com os nervos em franja por tal desdita nos sair na rifa e nos calhar em sorte.

Um cínico é a fava do bolo-rei. Ouve aqui, escuta ali, leva para acolá. Mas nunca mostra o seu lado. Esse é o seu garante. Ganha fama e tira proveito, à custa de posturas sombrias e dizeres dúbios.

Um cínico, vestido na sua capa cinzenta, distribui simpatias com a facilidade e a destreza de um taberneiro na lavagem dos copos. A sua opinião? Um mistério. O seu projecto? Um enigma. O seu querer? Uma ambiguidade. As suas alianças? Fortuitas e trémulas.

Um cínico nunca diz o que pensa, enreda-se em palavras, e prefere não dizer nada de substantivo. Um cínico é um misto azedo do “mas” e do “porém”. Um pronome indefinido. Foge de compromissos. Salta de galho em galho. Mostra ser amorfo, o seu cinto de segurança. Não enfatiza, não valoriza.

Um cínico é um mascarado, usa disfarces, é um reservado, usa silêncios e vazios que lhe alimentam a aura de saber e competência. Constrói assim o seu castelo, o refúgio, a forteza, que o protegem das sindicâncias.

Um cínico nunca se mostra, por isso é tão difícil lidar com ele. Conversa, mas adia, fala, mas não seduz, argumenta, mas não conquista. Nunca se sabe ao certo o que um cínico está a pensar ou o que pretende fazer. É imprevisível.

Um cínico só gosta de si mesmo. Não é leal. É uma extensão da maldade, um distúrbio de personalidade. Quando confrontado, quando chamado ao debate, tropeça, claudica, foge de fininho.

Um cínico tem corpo, mas falta-lhe coluna, tem mãos e braços, mas não tem alma. E um corpo sem alma, não tem sentir, está a meio, inacabado, incompleto.

Todos os cínicos são produzidos, sobra-lhes em falsidade o que lhes falta em genuinidade. Há os cínicos básicos e os que têm nota artística. Os cínicos não olham de frente, vestem-se de cortinados e vivem atrás dos biombos, sempre à espreita do seu momento glorioso. Nunca se dão a conhecer. Têm medo de expor a sua fraqueza e a sua insegurança. Nunca sabemos o que vai naquela cabeça, que manhas e artimanhas a povoam, que sacanices engendra. É uma encruzilhada. É um padecente de frustrações que carrega, um penitente de pecados que comete.

Um cínico é um falso, que vive das oportunidades e aproveita as facilidades. É um dissimulado. Anda sempre à boleia da vida e das suas vicissitudes. É um mal-agradecido.

Um cínico é um salta-pocinhas. Um cata-vento, à espera que os outros se mostrem. Não se conhecem as suas intenções. Farsante, foge do tira-teimas, da prova dos noves.

Um cínico é assim, e é assim, porque não podia ser de outro modo. É da sua natureza e da sua estatura moral. Faz parte. Quem gosta dos cínicos? Os cínicos.

 

Rebelo Marinho

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