No Verão, a Dama vale mais do que o Valete?

Quando, neste Verão, embaralhar um baralho e distribuir cartas com amigos ou familiares, repare bem: a Dama está acima do Valete? Ou será que, ali à mesa da esplanada, o Valete já ganhou o trono por astúcia?

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  • 12:09 | Domingo, 20 de Julho de 2025
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Se o jogo de cartas for de proveniência aristocrática, a dama valerá mais… se o jogo for de proveniência popular será o valete mais valioso…

Sol, sardinhas, toalhas estendidas, crianças molhadas e adultos à sombra com um baralho de cartas na mão. O Verão português é, entre muitas coisas, um tempo de jogo: jogam-se suecas em mesas de jardim, buracos em cafés de aldeia, paciências silenciosas em varandas com vista para o mar. E é nestes jogos de cartas — tão simples quanto carregados de história — que por vezes se escondem códigos sociais mais antigos do que imaginamos.

Uma das curiosidades que passa despercebida à maioria dos jogadores ocasionais é a seguinte: nos jogos em que a Dama (ou Rainha) vale mais do que o Valete (ou Pajem), estamos normalmente perante jogos de matriz aristocrática ou burguesa.

Pelo contrário, quando o Valete assume maior valor do que a Dama, é mais provável que estejamos diante de um jogo de tradição popular, moldado no improviso das tabernas e das casas modestas. Não é uma regra absoluta, mas há neste padrão algo de profundamente simbólico.


A origem dos baralhos de cartas na Europa remonta ao século XIV, provavelmente trazidos por mercadores muçulmanos através da Península Ibérica. Os primeiros baralhos usavam naipes diferentes dos atuais — taças, moedas, espadas e bastões — e variavam conforme a região. Mas foi o baralho francês, já no século XV, que impôs os quatro naipes modernos (copas, ouros, paus e espadas) e as três figuras: Rei, Dama e Valete.

Esta estrutura imitava a ordem social: o Rei no topo, a sua consorte abaixo, e o Valete, um criado de armas ou escudeiro, na base da escala nobre.

Nos jogos mais refinados — o Whist, o Bridge e o nosso contemporâneo King — esta ordem mantém-se inalterada, como reflexo das boas maneiras, da estrutura de corte e da reverência cerimonial.

Mas nem tudo é disciplina. A Revolução Francesa, que quis derrubar tronos e abolir privilégios, não se esqueceu das cartas. Num gesto politicamente simbólico, os revolucionários tentaram suprimir do baralho as figuras reais — o Rei, a Dama e o Valete — substituindo-as pelos ideais da nova ordem: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Foi, em rigor, uma das primeiras tentativas políticas de “cancelamento” cultural. Mas não funcionou. O povo continuou a jogar com reis e rainhas, às escondidas ou com baralhos antigos. O novo baralho republicano nunca ganhou o coração dos jogadores, e o antigo regime, pelo menos nas cartas, sobreviveu à guilhotina.

Já nos jogos populares, criados e recriados à margem das cortes, o Valete começou a ganhar importância. Por vezes por conveniência do jogo, por outras como afirmação lúdica de que a esperteza vale mais do que a linhagem. É o caso da nossa sueca, onde o Valete de paus — o temido “Zé-Pequeno” — se sobrepõe a qualquer Dama.

Ou do truco sul-americano, nascido nos bairros e nas praças, onde o Valete serve para blefes e truques malandros.

Em certos jogos do Norte de Portugal, chamava-se “dama velha” à Dama de paus, carta tida como fraca, ultrapassável por qualquer figura mais vivaça. A Dama, símbolo do protocolo, perde assim para o Valete, símbolo da astúcia.

Dois jogos em particular ajudaram a eternizar essas dinâmicas simbólicas: a Canastra e o Bridge. A primeira, de origem sul-americana, chegou a Portugal nas décadas de 50 e 60 e encontrou terreno fértil nos navios da Marinha portuguesa. Era fácil de aprender, ocupava o tempo morto das longas travessias e fomentava companheirismo e estratégia. Em muitos navios da Armada, oficiais e sargentos passavam horas a fio em torneios informais de Canastra, com folhas de pontuação coladas nos camarotes. Ainda hoje, em clubes náuticos e lares de antigos combatentes, há quem jogue Canastra como quem recita uma oração antiga — com o ritmo de quem já viu mar alto e sabe o valor de um par bem jogado.

Já o Bridge, nascido das evoluções do Whist, foi desde cedo o jogo predileto da elite militar e diplomática britânica. Entre os oficiais da Royal Navy, tornou-se quase uma disciplina auxiliar: jogado a bordo de cruzadores, em salões de estado, em estações coloniais ou clubes de oficiais espalhados pelo Império. Não era apenas passatempo — era treino mental, etiqueta, contenção emocional e arte estratégica. No auge da presença britânica no Mediterrâneo e no Índico, havia capitães que preferiam perder uma batalha do que uma partida de Bridge. Na Marinha portuguesa, embora menos difundido, o Bridge também foi praticado em certos círculos mais formais, com particular incidência entre oficiais do Estado-Maior e diplomatas navais.

Menos conhecida é a razão matemática por trás da estrutura do baralho francês: 52 cartas para as 52 semanas do ano, quatro naipes para as quatro estações, 13 cartas por naipe como as 13 luas cheias anuais. E até nas figuras há ecos clássicos: a Dama de espadas representava Palas Atena, deusa grega da sabedoria; o Valete de ouros, Hector, herói de Tróia. Nada disto é acaso. As cartas são também, no seu silêncio colorido, um compêndio de mitologias disfarçadas de lazer.

Há quem pense que as cartas são apenas um passatempo de Verão, mas isso é uma meia verdade. Os jogos transportam história, transmitem valores, guardam ecos de épocas em que o Rei não era apenas uma figura de papel.

Quando, neste Verão, embaralhar um baralho e distribuir cartas com amigos ou familiares, repare bem: a Dama está acima do Valete? Ou será que, ali à mesa da esplanada, o Valete já ganhou o trono por astúcia?

Pode parecer só um jogo — mas há muito mais escondido entre as cartas.

 

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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