Viver numa sociedade democrática implica, inevitavelmente, conviver com a fricção entre sensibilidades pessoais e a liberdade de expressão. No entanto, quando um sistema judicial se torna receptivo a ações judiciais motivadas pela mágoa subjetiva de quem se sente atingido por uma piada — especialmente no caso de figuras públicas — tal realidade representa não apenas um sintoma preocupante de fragilidade democrática, como um prenúncio do declínio da liberdade criativa, humorística e crítica.
Neste artigo proponho -humildemente- que se proteja explicitamente o humor como forma privilegiada de expressão — imune, dentro de certos limites objetivos, à litigância emocional baseada em reações psicológicas subjetivas.
1. O Problema:
Judicialização das Emoções A tendência para judicializar o desgosto, a tristeza ou o desconforto emocional provocado por conteúdos – humorísticos ou não – representa uma deriva perigosa.
A democracia e o estado de direito não podem converter-se numa arena de litigância de sensibilidades, onde o critério de legalidade se confunde com o limiar da suscetibilidade individual.
Permitir que um cidadão — por mais ou menos famoso que seja — processe um humorista apenas porque “não gostou” de ser alvo de uma piada é transformar o Direito num instrumento de censura ao serviço da vaidade, e não da justiça. Mais grave ainda quando tal litígio é acolhido nos tribunais, criando um precedente em que a ferida subjetiva se sobrepõe ao princípio da liberdade crítica.
2. Humor como direito cultural e político:
O humor não é um luxo cultural: é um instrumento político e social essencial. A sátira, o escárnio e a paródia foram historicamente meios de resistência, questionamento e descompressão social.
Numa sociedade plural, o humor deve ser reconhecido como expressão superior da liberdade artística, pelo que se torna imperioso inscrever esta liberdade com estatuto de proteção reforçada na legislação portuguesa — em linha com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos —, estipulando que a piada, enquanto forma artística, não pode ser objeto de ação judicial com base em meras ofensas emocionais, salvo quando exista incitamento à violência, ódio ou discriminação.
Assim urge não só salvaguardar e Proteger o humorista contra processos motivados por simples melindre ou desconforto, como também reforçar a distinção entre expressão crítica e ofensa gratuita, sem sacrificar a liberdade de criação, e ainda desincentivar a utilização dos tribunais como instrumento de silenciamento por parte de figuras públicas incomodadas com o espelho que o humor e a crítica lhes devolvem.
3. Figuras públicas: mais escrutínio, não mais privilégio:
As figuras públicas, justamente por usufruírem de visibilidade, influência e plataformas, devem tolerar e dotarem-se de formas e estratégias de resiliência às críticas e à paródia.
A tentativa de se blindarem contra o riso é sintoma de autoritarismo emocional — e ameaça o papel cívico do humor como contrapeso simbólico ao poder, ao estrelato e ao ego institucionalizado.
A continua a legitimação de ações judiciais baseadas na ofensa subjetiva à vaidade pública, pode levar a uma erosão progressiva da cultura crítica.
O humor será domesticado, os humoristas autocensurados, e a democracia amputada da sua linguagem mais popular e desarmante: o riso.
Conclusão: Pelo direito a rir, mesmo que doa:
Reformar a legislação neste domínio é proteger a integridade do espaço público contra a tirania da emotividade privada. É afirmar que viver em sociedade implica aceitar que podemos ser alvos de piadas — sobretudo e principalmente quando temos palco, poder e visibilidade.
A liberdade de expressão não existe para proteger o que nos agrada, mas precisamente o que nos incomoda. Que o Direito a compreenda. Que o legislador a salvaguarde. E que o humor continue a cumprir o seu papel: dizer o que não pode ser dito — e fazê-lo rindo.
O local mais correcto para tratar das emoções é no consultório de um psicoterapeuta e não na sala de audiências de um tribunal.
Artigo de opinião da autoria de Pedro Henrique Esteves – Psicólogo