Vivemos tempos de ruído — climático, social, ético. Mas há um silêncio mais ensurdecedor: o da nossa resposta à agonia do planeta. A Terra chora — literalmente — sob os efeitos da predação sistemática que o modelo económico dominante insiste em mascarar de progresso. E enquanto isso, grande parte da sociedade observa com apatia civilizada, como se a catástrofe climática fosse um fenómeno externo, alheio e inevitável.
A verdade é que não é inevitável. É induzida. É escolha.
Hoje, essa visão profética revela-se um antídoto contra a lógica utilitarista que colonizou a nossa relação com o mundo natural. O que em Francisco era gratidão, em nós tornou-se apropriação. O que era reverência, converteu-se em domínio. De irmandade passámos à exploração. De comunhão à posse.
Os eventos climáticos extremos que se multiplicam um pouco por todo o mundo — como as inundações devastadoras que recentemente atingiram o estado brasileiro do Rio Grande do Sul — são apenas o sintoma mais visível de uma doença mais profunda: a rutura espiritual e política entre a humanidade e o planeta que a sustenta. A crise ecológica é, acima de tudo, uma crise de relação. E, como tal, exige não apenas soluções técnicas, mas uma reconstrução simbólica e moral da nossa presença no mundo.
Francisco não era ingénuo. Sabia que a verdadeira conversão começa no coração, mas não termina aí. A sua vida foi profundamente política, no sentido mais nobre da palavra: um gesto constante de resistência à lógica de poder, de acúmulo, de violência estrutural contra os mais frágeis — humanos e não-humanos.
Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco retoma esse legado e denuncia:
“O ambiente humano e o ambiente natural degradam-se juntos, e não poderemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social.” (LS, n.º 48)
A questão climática, portanto, não pode ser tratada como uma abstração científica ou um capricho ideológico. Trata-se de uma questão de justiça intergeracional, de ética da responsabilidade e de sobrevivência da própria civilização.
Por isso, não basta sensibilizar. É urgente politizar o debate ecológico.
Desconfiar do greenwashing. Denunciar a hipocrisia das cimeiras internacionais que acumulam promessas e adiam compromissos.
E mais: é urgente reconstruir uma espiritualidade ecológica que nos reconcilie com a Terra — não como recurso, mas como casa; não como propriedade, mas como sujeito.
A juventude que hoje sai à rua em protesto, que ocupa escolas, que enfrenta tribunais e governos, representa o novo rosto desse franciscanismo radical. Um rosto laico, plural, informado — mas profundamente inspirado por aquele mesmo grito:
“Esta nossa irmã geme por causa do mal que lhe provocamos.”
Talvez já seja tarde para evitar muitos dos estragos. Mas nunca será tarde para agir com lucidez, com coragem e com responsabilidade histórica.
Se São Francisco estivesse hoje entre nós, não estaria a contemplar passivamente as flores. Estaria a bater à porta dos ministérios, das empresas e das consciências. E talvez, mais uma vez, se fizesse ouvir primeiro entre os pobres, os animais e as árvores.
A Terra já não canta.
Mas ainda não se calou.
A pergunta é: vamos continuar a ignorá-la?
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor