Cinco décadas depois da libertação, causa-me náuseas ver a sociedade tão extremada.
No seu íntimo, a geração revolucionária de Abril continua sentada num trono de virtudes, vendo o mundo por uma suposta imaculada torre de marfim. Autoritária, não aceita descaminhos. Julgando-se dona de verdades incontestáveis e ideologias perfeitas, condena e abjura todos aqueles que não acompanham a procissão. E ofende quem tem a desdita de desalinhar do guião sagrado. Cega, não vê defeitos nas causas que defende. E tudo o que a democracia permitiu de mal, e absolveu, é culpa de quem, antes, não fez o trabalho de casa.
Sempre a sacudir responsabilidades, a velha esquerda saracoteia-se no largo dos heróis e dos mártires da Pátria. Nomeia os mordomos do festim, veste opas garridas, carrega o santo no andor, contrata a banda, encomenda os foguetes que estoiram nos céus. Agita o turíbulo com o incenso da democracia. E na quermesse da tarde leiloa o produto, arrematado por um vintém.
As pagelas que outrora inspiraram multidões num combate assanhado contra o inimigo capitalista perderam cor e brilho. Amarelecidas e desbotadas, vêem o sol nos feriados da catarse nacional. Muitos, à falta de melhor pouso, acobertam-se hoje em espaços moderados, mas sem convicção, espreitando quimeras vãs. E votam para uma democracia representativa que jocosamente maltratam. Mas sempre ranzinzas e zangados. Nunca perdem a ideia.
Das novas direitas, igualmente radicalizadas, com muito que se lhes diga, cuidarei depois.