Sofia Castro, estudante do 3.º ano da Licenciatura em Tradução do Departamento de Línguas e Culturas, foi distinguida com o prémio de Melhor Ensaio crítico, uma nova distinção fundada nesta 3.ª edição. A criação deste prémio surgiu na sequência da 2.ª edição do Choix Goncourt du Portugal, em que vários ensaios críticos apresentados durante a cerimónia foram considerados de excelência, tendo o de Joana Beatriz Ramos, então estudante do Departamento de Línguas e Culturas, sido particularmente destacado pela sua qualidade.
Sofia concorreu com um ensaio crítico escrito sobre Houris, de Kamel Daoud, cuja versão adaptada apresentou oralmente durante a cerimónia oficial. O seu trabalho destacou-se pela clareza, pelo rigor e pela sensibilidade interpretativa, tendo sido reconhecido como o melhor entre os ensaios críticos submetidos.
Também do Departamento de Línguas e Culturas, Diana Gabriela Sousa, estudante do 3.º ano da Licenciatura em Línguas e Estudos Editoriais do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, integrou o júri nacional do Choix Goncourt du Portugal 2025, presidido por Philippe Claudel, escritor e Presidente da Académie Goncourt. O júri reuniu oito representantes universitários de todo o país, incluindo a representante da UA. Diana defendeu com convicção e solidez argumentativa o romance Jacaranda, de Gaël Faye, que acabou por ser eleito vencedor da edição portuguesa do prestigiado prémio literário.
Ambas as estudantes foram nomeadas pelos pares para representar a UA na cerimónia final, que decorreu no dia 5 de junho, na Embaixada de França em Lisboa, com a participação dos outros estudantes da Universidade do Algarve, da Universidade de Coimbra, da Universidade de Lisboa, da Universidade da Madeira, da Universidade do Minho, da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade do Porto.
Programa da Cerimónia (5 de junho 2025) – Embaixada de França
· 14.30 h – Reunião do Júri Choix du Portugal 2025
· 17h30 – Proclamação dos resultados
o Apresentação por Guillaume Boccara, Adido de Cooperação Científica e Universitária
o Intervenção de Thomas Bertin, encarregado de negócios a.i.
o Discurso de Philippe Claudel, Presidente da Académie Goncourt
o Apresentação das quatro obras finalistas pelos estudantes
o Anúncio do Prémio para Melhor Documentário
o Proclamação do laureado Choix Goncourt du Portugal
Este encontro literário e académico reforça os laços culturais entre França e Portugal e valoriza o ensino da língua francesa no meio universitário nacional. A participação e distinção de alunas da UA realçam a qualidade do trabalho desenvolvido pelo Departamento de Línguas e Estudos Estrangeiros.
Apresentam-se os dois trabalhos em epígrafe.
Como sobreviver à faca do silêncio num mundo onde se degolam mais mulheres do que carneiros?
Sofia Castro
Estudante do 3º ano da Licenciatura em Tradução
Departamento de Línguas e Culturas
Universidade de Aveiro
“Em 2024, o escritor e jornalista argelino Kamel Daoud publica Houris pela editora Gallimard. Aclamado pela sua força literária e política, o romance conquista o prestigiado Prémio Goncourt – uma estreia histórica para um autor argelino – e também o Prémio Landerneau des Lecteurs. É um acontecimento. Um escritor oriundo de um país onde escrever livremente é um risco, onde nomear as feridas é uma provocação, é consagrado pela mais emblemática instituição literária francesa.
Mas aquilo que a França celebra, a Argélia censura. Porque Houris não sussurra. Empunha as palavras como quem empunha uma lâmina. Nomeia o que os corpos, durante demasiado tempo, foram forçados a calar. Toca nas cicatrizes mal saradas da “década negra” (1990-2000), interroga a memória do sangue, os corpos femininos despedaçados, a violência sistémica do patriarcado: temas que o Estado argelino prefere ignorar. Relembra o que a Carta para a Paz e Reconciliação Nacional, adotada em 2005, quis apagar: que houve mulheres violadas, mutiladas, silenciadas. Que ainda hoje, dizer “eu lembro-me” tem um preço. O artigo 46, por exemplo, prevê vários anos de prisão a quem “instrumentalize as feridas da tragédia nacional para prejudicar a imagem da Argélia”.
A proibição é sintoma de um sistema que se recusa a permitir que uma mulher argelina, mesmo fictícia, fale do que se quer manter nas sombras. E no entanto, Aube escreve com fúria. Esta mulher de vinte e seis anos foi silenciada por uma traqueotomia que a deixou quase muda. Sobrevivente de um massacre durante a década negra, mutilada no corpo e na voz, carrega um “sorriso” monstruoso: uma cicatriz de dezassete centímetros, de orelha a orelha.
Mesmo assim, ela fala. Não com a boca, mas com uma língua interior, dolorosa e incandescente. A narrativa constrói-se como um monólogo de beleza dilacerante, onde Aube se dirige ao feto que carrega, uma filha. Uma filha não desejada, que ama e rejeita ao mesmo tempo, concebida num mundo onde a maternidade é uma armadilha, e os ventres, territórios colonizados pela religião, pela lei e pela vergonha. Quer abortar. Não por frieza, mas por amor. Bastariam três comprimidos, repete. Três comprimidos para evitar uma vida de sofrimento. Tenta impedir que a filha nasça num país onde ser mulher é ser oferecida, em silêncio, à faca do patriarcado, da tradição, do olhar.
Chama-lhe, com ternura irónica, “a minha Houri”, evocando as virgens prometidas aos mártires no paraíso islâmico. Toda a tragédia do título está aí: esta menina, que a narradora quer impedir de nascer, já está, aos seus olhos, condenada. Mais vale regressar ao céu do que nascer num país que mata mulheres com orações, leis e silêncios.
Esse conflito interior ecoa também na figura da mãe, Khadija. Advogada poderosa, protetora feroz, encarna a tensão entre o amor e o controlo, o silêncio e o cuidado. Aube odeia-a e ama-a, como odeia e ama a filha que carrega. Neste triângulo – mãe, filha, avó – desenha-se uma genealogia do sacrifício feminino. Porque Houris diz-nos que é sempre uma mulher a pagar a culpa de um homem, uma mulher a receber a faca no lugar do filho do profeta. E Aube quer quebrar essa linhagem. Quer matar a filha por ternura, não por crueldade. Quer evitar que conheça a violação, a mutilação, a guerra. Que um dia seja reduzida a “cordeirinho de Deus”. Quer abortar por amor, e é isso que torna este livro insuportável. Não justifica nada, mas ousa tudo dizer.
Aube é mais do que um corpo ferido: dissolve-se no texto e torna-se símbolo. Uma alegoria viva, eco de todas as mulheres silenciadas. É a memória que a Argélia quer matar. O país deixou-lhe o sopro, mas não a voz. O seu mutismo é político. Como diz uma voz no texto: “E tu, tu és um livro, jurava-me ela. Um verdadeiro livro, o relato do que não se pode esquecer, um alfabeto que só os ignorantes ignoram” (Houris, p. 34). O seu corpo é um texto que não se pode censurar. Quando os livros são proibidos, restam as cicatrizes. E Aube escreve com lâmina. Rasga a língua oficial: a dos sermões, das sentenças, dos salmos patriarcais. Fende o discurso nacional e injeta memória no cadáver da História. Através dela, é uma geração inteira de mulheres que fala.
Ao habitar Aube, Kamel Daoud constrói um monólogo denso, incandescente, por vezes alucinado. Empresta-lhe a sua pena, e deixa florescer uma voz feminina de precisão cortante. Recusa da maternidade, corpo mutilado, guerra civil, opressão religiosa, condição feminina. Cada fragmento desta história colide com a ordem estabelecida e reacende o exílio interior de um povo dividido entre Deus e a faca. Há ternura, fúria e lucidez brutal. O mundo de Aube é o nosso, visto da face escondida: um mundo onde ser mulher é escolher entre calar-se, morrer ou tornar-se degoladora da própria linhagem.
O estilo de Daoud acompanha o grito: lírico sem ornamento, poético sem enfeite, lúcido sem frieza. Uma linguagem bifurcada como Aube: uma língua exterior, áspera, partida, impronunciável; e uma língua interior, sumptuosa, irónica, carregada de cultura, cólera e humanidade. Cada frase morde. Cada parágrafo arranha. Lê-se o cheiro das palmeiras de Orão, o sangue dos carneiros do Eid-el-Kabir, a ferrugem das varandas, a vergonha dos homens, a cólera das mulheres.
E aqui está o abismo: este livro, tão profundamente feminino, foi escrito por um homem. Um homem argelino. Podemos perguntar: é legítimo? É sincero? Pode-se falar em nome de um corpo que nunca se habitou? E se esse corpo foi violado, silenciado, negado?
O que parecia apenas um murmúrio literário tornou-se controvérsia. A argelina Saâda Arbane afirma que a sua memória íntima, marcada pelas violências da década negra, foi usada sem consentimento para criar Aube. Diz-se traída, exposta contra vontade através de uma personagem de papel. Dois processos foram abertos: um na Argélia por violação de segredo médico; outro em França por atentado à vida privada. Daoud invoca a liberdade artística, a ficção, a transfiguração do real. Mas o caso desloca a questão: pode-se transformar a dor alheia em romance sem roubar uma voz? Pode-se fazer falar o silêncio sem o usurpar? Quando a vida se torna matéria literária sem autorização, o que resta do autor de si mesmo?
E, no entanto, Daoud não se apropria, ele escuta. Encarnar não é trair. Dá voz a Aube para lhe devolver o que o mundo lhe tirou. Não se esconde atrás de uma moral. Abre uma fenda na literatura masculina para ali deixar emergir uma língua feminina de rara potência. Mas é preciso dizê-lo: que tenha sido um homem a carregar esta voz, é o espelho de um mundo onde as mulheres ainda não podem gritar sem punição. Onde os seus livros são censurados. Onde as suas palavras são transformadas em ameaça.
Este romance é argelino, sim. Tem nomes, ruelas de Orão, cafés Marhaba e imãs a chamar pela madrugada. Mas Houris ultrapassa fronteiras. Fala por todas as mulheres invisíveis. Por todas as mães em fúria. Por todas as línguas proibidas, amputadas por dogmas e reconciliações forçadas. Fala do direito a abortar, a escolher, a recusar a maternidade quando esta é castigo e não dom. Numa época em que até países “modernos” recuam no direito ao aborto, de França à Polónia, Aube é o eco de milhões de mulheres: aquelas que não querem dar à luz dentro de prisões.
A narrativa expõe com precisão lancinante o que significa ser mulher num mundo onde a liberdade feminina é uma liberdade de vidro: transparente, por vezes bela, mas tão frágil que basta uma palavra, uma lei, um homem ou uma guerra para a estilhaçar. Aube sabe que não é livre. O seu corpo, o seu futuro, o seu útero – tudo lhe foi tirado. Tenta salvar o que resta: a voz, a dignidade, a aparência. Mas nem o amor de uma mãe é suficiente para colar os cacos de um mundo quebrado. Houris diz-nos que a liberdade das mulheres é sempre condicional. Depende de regimes, crenças, conjunturas. Nada está garantido. Falar, amar, escrever, caminhar sozinha… tudo isso pode desaparecer.
E é precisamente por ser tão verdadeiro, tão cortante, tão perturbador, que o livro se torna subversivo. Aos olhos de um poder vacilante, é perigoso que uma mulher, pela força nua da palavra, possa fazer tremer os muros do silêncio de Estado. Em 2025, censurar um livro é já uma confissão: a de um regime que prefere sacrificar a verdade para salvar a aparência. Que prefere proibir um livro a enfrentar os fantasmas que ele convoca. A questão é: quando chegará a vez da França querer silenciar esta voz?
A censura de Houris é o sintoma de uma guerra ainda viva, nos corpos e nas consciências. É o retrato de uma Argélia presa numa vigilância sufocante, que prende artistas, cala dissidentes. Acreditou-se que bastava proibir o livro para o calar. Mas desde então, Houris circula clandestinamente, como os livros proibidos sob as ditaduras. Tornou-se movimento. Gesto coletivo. Um “ainda arde” depois da cinza.
Na era em que tantas nações santificam a amnésia, Houris é um grito necessário. Lembra-nos que nenhuma paz se constrói sobre o silêncio das mulheres e dos mortos. Não o recomendo a todos: é cru, desconcertante, por vezes insuportável. Mas terrivelmente verdadeiro. Quem ainda acredita que a literatura pode fender uma crença e abrir uma garganta fechada deve lê-lo. Este romance é um rasgão na garganta do mundo por onde finalmente passa um sopro de ar. E lembra-nos também que a verdadeira revolução acontecerá quando as Aube de hoje puderem escrever elas mesmas. Puderem ser publicadas.”
Jacaranda: quando a literatura floresce sobre ruínas
Gabriela Pereira
Estudante do 3º ano da Licenciatura em Línguas e Estudos Editoriais
Departamento de Línguas e Culturas
Universidade de Aveiro
“No dia 5 de junho de 2025, o romance Jacaranda, de Gaël Faye, foi distinguido com o Choix Goncourt du Portugal, um prémio atribuído por estudantes universitários portugueses no âmbito da prestigiosa Academia Goncourt. O reconhecimento foi merecido, não apenas pela qualidade literária da obra, mas pela sua coragem em tocar nas feridas abertas da história africana contemporânea. Jacaranda não nos oferece consolo. Obriga-nos a lembrar, a escutar, a sentir.
Gaël Faye, escritor e músico franco-ruandês, já havia conquistado o mundo literário com Petit Pays (2016), uma narrativa marcada pela infância interrompida pelo genocídio do Ruanda. Em Jacaranda, retoma esse território de memória e dor, mas leva-o mais longe. Pela voz de Milan, um jovem dividido entre a França e o Ruanda, o autor conduz-nos por um percurso fragmentado, em que a busca pela identidade se mistura com os escombros da violência e da diáspora.
O romance alterna tempos, lugares e vozes, costurando o presente europeu ao passado africano. Milan procura compreender quem foi o seu pai, morto em circunstâncias ambíguas, e reconectar-se com uma terra que carrega no sangue, mas da qual foi afastado pela guerra e pelo exílio. Através desta busca pessoal, Faye ergue um retrato coletivo: o de um povo marcado pela tentativa de apagamento, físico, histórico, afetivo.
A escrita de Faye é musical, como se cada frase fosse atravessada pelo ritmo da memória e da melancolia. Há uma cadência poética, herdada da sua experiência como rapper, que transforma o trauma em canto. Mas não é um canto lírico ou reconfortante: é tenso, contido, por vezes seco, outras vezes explosivo, como os silêncios que se acumulam em quem viu demasiado cedo o mundo ruir.
Jacaranda confronta-nos com o que preferimos esquecer: que há lugares onde a infância é interrompida pela morte, onde os corpos são marcados pela etnia, onde o ódio se transforma em rotina. Lugares que não desapareceram, mas que foram empurrados para os cantos cegos da geopolítica. Faye lembra-nos que o esquecimento é um privilégio, e que há vidas que não têm tempo para esquecer porque ainda lutam por existir.
O nome da árvore que dá título ao livro não é inocente. O jacarandá floresce em tempos de seca, tingindo o céu de violeta como um prenúncio de beleza possível. No romance, ele simboliza essa memória persistente que resiste ao apagamento, uma beleza ferida, mas viva. Cada flor parece dizer: “eu ainda me lembro”.
Mais do que contar uma história, Jacaranda constrói um espaço de escuta para vozes silenciadas: dos mortos, dos sobreviventes, dos filhos da diáspora. Faye não nos oferece respostas, mas inquietações. E é isso que torna o romance urgente.
Num tempo em que o mundo parece anestesiado diante do sofrimento dos outros, este livro devolve-nos o poder de sentir, de recordar que, para muitas comunidades, o passado não passou, ele continua a moldar os corpos, as escolhas, os nomes, a ser uma herança pesada demais para ser carregada em silêncio.
Gaël Faye escreveu um romance que é também um grito suave, uma elegia de pertença e perda. E ao premiá-lo, os estudantes portugueses fizeram mais do que reconhecer o valor literário da obra – reconheceram que, mesmo à distância, há dores que nos tocam. Porque enquanto houver histórias como esta, ainda haverá esperança. E responsabilidade.”