Uma revolução sempre por cumprir

Temos um grave problema na Justiça que ninguém quer ajudar a resolver. Os poderes judiciais não estão autorizados a implicar na atividade governativa, mas têm vindo a fazê-lo sem piedade. Há uma parte dos magistrados que não tem formação e que, muito pior, não sabe nada da vida do dia a dia, de como a sociedade se organiza e vive.

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  • 17:26 | Quinta-feira, 18 de Abril de 2024
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Há duas perguntas que estarão na cabeça de muitos portugueses por estes dias – ainda faz sentido comemorar o 25 de abril de 1974? Não deveríamos deixar a data nos anais da História e permitirmos que ela se consolide como passado?

Sim, para mim faz todo o sentido comemorar Abril e tudo o que representa. Não porque queira atualizar a mensagem, não porque entenda que que a memória nos vai traindo, mas porque comemorar a Revolução é assumir que este nosso país, de quase nove séculos, só consagrou dignidade e futuro, alargados a todos os que nele viveram e vivem, durante este último meio século.

O Movimento das Forças Armadas, no seu manifesto primeiro, consagrou uma mensagem agregada a três palavras – Democratizar, Descolonizar e Desenvolver. Porém, tal trilogia não advém do pensamento de um qualquer militar, não nasce sequer na preparação do golpe.

Em 1973, aquando do último Congresso da Oposição Democrática, Maria Emília Brederode dos Santos leva aos trabalhos uma tese de Medeiros Ferreira, então exilado, em que as marcas de um programa de libertação do país deveriam ser assentes nos três D’s. E foi a partir daí que o caminho se fez. Portugal é hoje um país completamente diferente que nem mesmo os mais reacionários, ultramontanos e tradicionalistas podem contestar.


Mas deveremos viver do conseguido e esquecer os grandes desafios que nos são colocados? A resposta é fácil e as últimas eleições deixaram todos alertas que importa não desvalorizar.

A democratização do país foi o D que mais se conseguiu cumprir. Vencidos os primeiros anos de instabilidade, quer os provocados pelos movimentos saudosistas quer os incitados pela esquerda radical, o país é hoje, sob o ponto de vista formal, uma democracia adulta.

Mas não podemos estar satisfeitos com o caminho das últimas duas décadas. O poder infantilizou-se, a informalidade progrediu, o centralismo regressou em força, a corrupção moral parece ser uma chaga que teima em queimar a bondade da política.

Temos um grave problema na Justiça que ninguém quer ajudar a resolver. Os poderes judiciais não estão autorizados a implicar na atividade governativa, mas têm vindo a fazê-lo sem piedade. Há uma parte dos magistrados que não tem formação e que, muito pior, não sabe nada da vida do dia a dia, de como a sociedade se organiza e vive.

Por outro lado, os partidos políticos assumem uma visão de circuito fechado, dão-se pouco à sindicância da sociedade, revelam a criação de oligarquias que fecham o acesso à participação.

Tal decorre de dois fatores que são muito limitadores – o caudilhismo (herança do fascismo) e a desconsideração do debate local.

A democracia ao nível local é, em mais de metade dos municípios portugueses, uma mera substituição de protagonistas. Verifica-se uma progressiva eliminação das alternativas, reduz-se o debate a meros atos de representação. Se até ao início deste século, havia a possibilidade de se garantirem candidaturas autárquicas de oposição e alternativa, o processo de emagrecimento da função pública pelo território e a passagem progressiva de competências para os municípios menorizaram a liberdade local. Foi nos professores, com a embirração que os poderes lhes destinaram, que tal se verificou de forma mais grave, porque era a partir destes que a independência do pensar e agir local mais se validava.

A somar a tudo isto, a comunicação social é cada vez mais débil e centralista, esquece o país real e não expõe o que vai acontecendo de abjuração da mesma democracia no território. Os jornais e as rádios dependem, em casos demasiados, dos interesses do poder e dos benefícios dos que andam à volta do poder. É este contexto que leva à medrança do compadrio e do tráfico de influências, é esta circunstância que faz crescer os movimentos populistas que atormentam o nosso presente e ameaçam o nosso futuro.

Urge regressar ao aprofundamento da participação democrática, importa continuar Abril consagrando a valia de todas as militâncias e opiniões.

Há quem considere que a descolonização, o segundo D, se encerrou. Nada de mais errado. Num processo dramático, Portugal viu-se obrigado a entregar os territórios que ocupava aos movimentos africanos de libertação. Não conseguiu, por muitas razões que pouco estudadas estão, promover uma transição pacífica que tivesse como garantia os interesses de todos os que viviam nesses territórios. Portugal foi um joguete nas mãos das grandes potências.

Mas a descolonização que importa hoje é de outra natureza. Há na comunidade uma visão enviesada da História de Portugal, propala-se a portugalidade sem se saber o que significa, consagra-se a época de ouro dos descobrimentos sem os questionamentos que importam, desmerece-se o caminho que as antigas colónias seguiram. Se o Brasil fez, há muito, o seu trilho e tem hoje um profundo desconhecimento da nossa realidade, mesmo que advenha desse país a maior comunidade imigrante, os restantes países olham para os portugueses com pouca estima e seguem dando pouca valia à língua comum.

Nunca fizemos o nosso ato de contrição cristão sobre a escravatura, nunca debatemos, com a importância devida, as questões do racismo. A sociedade portuguesa é profundamente racista, passadista e crente num país que nunca existiu e que resultou da construção imagética de António Ferro na década de 1940 . Foi aqui que o 25 de Abril mais falhou, é aqui que continua a falhar. Os manuais escolares são o melhor exemplo de que o Estado Novo ainda vive.

Por último, o terceiro D de desenvolvimento. A nossa opção europeia ajudou muito no desenvolvimento português. Porém, esse desenvolvimento só se verificou, de forma muito visível, no âmbito material.

Os portugueses têm melhores condições de vida, a comunidade tem recursos como nunca teve ao longo da sua história. Mas terá Portugal crescido de forma “espiritual”? A minha resposta é pouco simpática.

A geração que fez o 25 de Abril queria, em abstrato, democracia e liberdade, mas estava profundamente marcada pelo Portugal pequenino, pelo respeitinho, pela estratificação social. A geração que já viveu a maior parte da vida em democracia continuou limitada na sua capacidade de ver o mundo, no mero ato de reivindicar, na destreza para a organização produtiva, na inaptidão para a melhor gestão dos recursos. Ao contrário do que os políticos de serviço dizem, a pouca produtividade da nossa economia não advém do excesso de impostos, resulta de uma estrutura empresarial com pouca capacidade de gestão, com pouca visão externa, com insuficiente dimensão para ganhar mercados.

Estamos agora num tempo novo. A geração do digital não quer saber dos bloqueios mentais das anteriores gerações, detesta as limitações que pais e avós lhes querem impor. Se conversarmos, de forma intimista, com muitos dos jovens que estão a sair do país, eles vão dizer-nos que não suportam a falta de abertura da família, a falta de interação nas conversas, a falta de ambição, a falta de futuro. Eles não querem que os pais se metam nas suas ocupações, não querem que as vizinhas velhas murmurem sobre a roupa que vestem e os seus cortes de cabelo, não querem ter de justificar as suas relações amorosas. As famílias destes jovens, que querem cidade e mundo, só lhes oferecem “aldeia”, tristeza e passado. Mesmo que os baixos salários e os problemas de habitação sejam problemas relevantíssimos e também ajudem numa justificação a dar…

Eu acredito muito no 25 de Abril que esta última geração vai querer cumprir. Será o que fará de Portugal um ser universal, o que vai levar-nos a ser um país da frente no espaço europeu, o que vai retirar-nos da mentalidade salazarista que ainda nos impede um olhar claro sobre o mundo.

Por isso digo: viva o 25 de Abril e vivam os 25 de Abril cheios de futuro que virão.

Ascenso Simões

 

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Publicado em Opinião