Saga duriense

A meia encosta, Mari’ Ana, alterada de feições, cabelos escuros hirsutos do vento e negros olhos inquietos, mirava ansiosa a curva do Pêgo Negro na esperança de ver romper a proa da barquinha rabela do seu homem, Luís da Ouca, a Peso da Régua saído em busca de serviço.

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  • 13:32 | Quarta-feira, 20 de Março de 2024
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O rio perdera a sua cor doirada e alternava o castanho claro com um cinza calaginoso entremeado de reflexos metálicos criados pela veemência das águas corridas à forte correnteza.

As margens estreitavam-se com a subida das águas, as bétulas e os ulmeiros quedavam-se à superfície pelos seus estrénuos corutos. O céu, soturno e bisonho, chegava-se às águas estreitando uma comunhão opressiva.

A natureza perdera a brandura e a placidez dos dias mansos e, numa inclemência agoirenta, irava-se com a terra e desirmanava-se dos homens. O rugido das águas ora ecoava clamoroso nos fraguedos das gargantas escalavradas ora saltava nos patamares xistosos como em teclado de sanfona.


A meia encosta, Mari’ Ana, alterada de feições, cabelos escuros hirsutos do vento e negros olhos inquietos, mirava ansiosa a curva do Pêgo Negro na esperança de ver romper a proa da barquinha rabela do seu homem, Luís da Ouca, a Peso da Régua saído em busca de serviço.

Ao fundo da aldeia de Barcos, onde tinham choupana, esconsas courelas e magras leiras, haviam ficado por momentos e em recatos as três filhas do casal.

A Deolinda, moçoila trigueira a sair da adolescência, tomara conta das duas irmãs, a do meio, Adosinda, calma como um querubim mourisco e a mais nova ainda aos cueiros presa, a Ernestina, de estranhos olhos azuis a aludir a uma qualquer celta raiz, sempre num berreiro estrídulo a impor suas razões.

Pela alvorada saíra Luís da Ouca a remo da foz do Távora. Em cima, Mari’ Ana um adeus lhe dera, sem palavras na boca que o encomendava à Senhora do Sabroso.

Na véspera, tentara dissuadir seu homem de descer a Peso da Régua. Que não era tempo de marinhar. Que as correntes estavam poderosas. Que a nortada soprava rija. Que mais uma semana de privações não os mataria à míngua…

Debalde, tal argumentário. Luís olhava as filhas, cerrava os punhos rijos como enxadas e do olhar triste delas afastava seus olhos magoados.

De noute, Mari’ Ana rogara com o corpo o que a fala não alcançara. Na ardência da entrega ecoara a súplica do seu rogo vão.

Às primeiras claridades da alvacente aurora, Luís erguera-se da enxerga, lavateara o rosto crestado e do fundo da masseira ripara da sobrante broa meia côdea escura, que aconchegara no velho lenço à laia de conduto para a jornada.

Enfrentara os quatro pares de olhos nele pousados mudos e para desanuviar, prometera à laia de despedida – “Logo a meia tarde cá estarei com boas novas para as minhas senhoritas.”

E à mulher, que em dona não se bule no rosto, deixara um afago no ombro. Descera ao Távora, soltara a barquinha, apontara a proa ao Douro e sem olhar para trás afoitara-se às duas dezenas de quilómetros rio abaixo.

A viagem lesta se fizera. Aprumado ao leme, rosto moreno salpicado de espuma, olhos no horizonte, a vela inchada pelo vento do Norte, via a proa erguida a sulcar veloz a água escura.

Acostado a rabela no cais de Peso da Régua, saltara em terra e subira ao armazém do Mestre Inácio, ronhento de labieta, escuso em choradinhos e, no meio de dois canadões de briol na taberna da Agostinha, lá regateara o magro estipêndio de adiantamento para três transportes de adubo ao Pinhão.

Um pouco turvado do vinho forte que lhe embatera no estomago vazio, carrego a bordo firmado e cilhado, rilhara o magro conduto e ao regresso se botara.

O vento vinha-lhe a desmão da vela. O casco pesado subia a água à amurada, a espadela vibrava trémula na mão que se lhe engalfinhava. Luís, de corpo tenso e olhar fronteiro, lia o rio como seu pai lhe ensinara do ensino colhido de seu avô.

Escolhia as linhas que só ele via. Aqui, como um poldro empinado, a proa erguia-se no ar escuro. Além, numa cabriola, ajoujava-se represo de uma âncora imaginária. Depois, de súbito, num arroubo de força, emergia num estralejar de madeira suada. De seguida, numa curveta inesperada, a ré afastava-se 90 graus da via e, num bailado corrido, ia ao seu oposto e vinha. A espadela contrariava estas oscilações como se fosse uma rajada punitiva de incerto desvairo.

Os primeiros quilómetros foram de uma dureza titânica. As correntes pareciam gargalhear deste ânimo viril, contaminado na destreza ao casco ligeiro, as oucas rangiam surdos ais, a vela ufana toava como tambor.

De upa em upa, mais um patamar do torvo rio se galgava.

Incessante, por vezes num remoinho terso, noutras num mergulho negro, Luís segurava a espadela com a mão direita, com a esquerda orientava a vela aos sopros levianos, abrangendo os quatro pontos cardeais.

Numa aberta, metia a mão no fundo bolso esquerdo e com ela afagava as moedas de prata granjeadas. Ali levava, no curto concavo de uma mão cerrada, o sustento para dois meses. E essa percepção dava-lhe o alento e a força para incitar o barco, para gritar aos ventos, para amaldiçoar as águas e se encomendar à santa.

Em breve a rabela chegava às águas mais espraiadas do negro e fundo leito rochoso.

O bramido volvera marulho e as pancadas da água, pareciam agora afagos ao correr do sargo.

Luís descontraiu os músculos retesados neste rendido momento em que o corpo cede. Calados, os verdugos da proa e os curvatões da ré, pareciam, em uníssono, descontrair com os músculos distensos do navegante.

Foi um momento de pausa na tenaz pugna. Desses brevíssimos instantes que carreiam em si, ou o remanso da acalmia ou o prenúncio da desgraça.

O Douro mavioso parecia sorrir e toar, animado da sussurrante vida milenar…

Sombrios os céus, retalhavam-se de pesados prumos prenhes das águas que, de súbito, rompidas as frágeis nuvens e, como cordoveias rotas, num rufar insane, tombaram no rio.

Luís, tolhido no efémero relaxe, solta a espadela e a vela frouxa, ouviu o rouco bramido do Nordeste, deixou a vela soltar-se das vergas do mastro e a espadela sacudida nas apègadas, como cobra solta brandiu-lhe tal e tão forte pancada no ombro direito, que o desequilibrou e atirou costados afora água dentro.

Tonto da pancada, reanimado pela algidez das águas, Luís emergiu a dez metros da rabela que, de proa apontada à sua cabeça, oscilava solta e de vela tombada.

Pesado da roupa, pulmões como um odre cheio, Luís sentiu a água puxá-lo para baixo. Com as chancas soltas, os pés bateram em fúria, os braços, como um lutador na arena, agrediram com violência o Douro agora aquietado.

Pelos olhos de Luís passou o luaceiro suplicante do olhar de Marí’Ana e os cerúleos olhos de Ernestina. Viu no alto a luzir a humilde cruz da capelinha da senhora do Sabroso, sua madrinha de baptismo e abençoadora de sua união com Mari’Ana.

Sobre si, asas abertas em envergadura plena, com as seis penas de voo adejando, um milhafre-preto pairava num balançar ligeiro corrido ao vento amainado. Luís viu-lhe os olhos negros no fundo amarelo, duros, em si cravados e do bico adunco saiu um grito agudo – “Ergue-te, ergue-te, ergue-te!

Luís nadou com força para a rabela, ora imóvel, ora dançando à sua frente, ora fugindo para mais longe. Assemelhava-se a um ritual antigo esta luta entre o homem, o rio, a rabela…

Daqueles momentos em que a natureza põe à prova no baixo olimpo da existência a vitalidade humana. Pronta para baixar o polegar ou toucar de oliveira a fronte do guerreiro.

Luís sentiu os membros pesados como chumbo, mas mais forte que tal força outra força dentro de si se ergueu e, em braçadas de um vigor derradeiro alcançou a amurada da barquinha, súbito imóvel e cúmplice para o deixar içar-se ao seu seio.

Caído no chão da rabela, como se regressado ao materno ventre, Luís, exausto, quedou-se arfante de encontro ao madeirame húmido…

A natureza, rendida à força do homem, aquietou-se e animou-se de uma paz instantânea. De uma trégua…

Luís ergueu-se trémulo, içou a vela, deitou mão esquerda ao bolso e tacteou as moedas. Com a direita na espadela endireitou a proa e deu-lhe rumo à margem.

A rabela fez com ele corpo e numa arremetida veloz curvou o Pêgo Negro.

Na lonjura escurecida da encosta, a minguada silhueta de Mari’Ana acenava-lhe com os dois braços abertos, prontos e ansiosos de o acolher. Às fraldas da puída chita, Deolinda, Adosinda e Ernestina…

 

 

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Publicado em Opinião