Raspadinha, 3 em cada 4 jogadores são pobres

Ficámos a saber, através do Jornal de Negócios, que os portugueses gastam em jogo online 10.800€ por minuto, 15,55 milhões de euros por dia, representando uma receita fiscal para os cofres do Estado de 108,2 milhões de euros, um aumento de 16% face a 2019.

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  • 12:31 | Terça-feira, 06 de Abril de 2021
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O vício do jogo é um problema sério que pode, se não for precocemente detetado e devidamente acompanhado, destruir a vida da pessoa, da família e dos amigos mais próximos.

Ficámos a saber, através do Jornal de Negócios, que os portugueses gastam em jogo online 10.800€ por minuto, 15,55 milhões de euros por dia, representando uma receita fiscal para os cofres do Estado de 108,2 milhões de euros, um aumento de 16% face a 2019.

Os investigadores da Universidade do Minho, Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, publicaram na prestigiada revista científica The Lancet o artigo “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal[1]”. O gasto médio por pessoa na raspadinha é de 160€ por ano em Portugal, um valor extremamente elevado quando comparado com os 14€ médios em Espanha.


Os números recolhidos pela própria Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, relativos a 2019, indicam o perfil dos jogadores de raspadinha em Portugal: 50% são da classe E (classe baixa); 26,6% são da classe D (média-baixa); 10,3% da classe C (média); e 13,1% da classe AB (média-alta/alta). Ou seja, três em cada quatro jogadores são pobres.

A adição é, em qualquer circunstância, um problema de difícil resolução, ainda mais complicado de solucionar, quando as vítimas são pessoas pobres que destroem o pouco orçamento que lhes resta e têm recursos exíguos para poderem tratar-se.

Raramente estou de acordo com as ideias de Daniel Oliveira, mas não deixo de ler os seus artigos no Expresso. O último, “Raspar o Pobre”, é muito certeiro e lança uma questão pertinente que nos deve, enquanto comunidade, fazer refletir:

“Não deixa de ser perverso que este jogo seja promovido por uma instituição que se dedica ao combate à pobreza. A pobreza não resulta do jogo, claro está. Mas quando mais de metade dos recursos da Santa Casa vêm daqui (cerca de 1600 milhões de euros de vendas brutas, em 2018), há uma dependência financeira que desmotiva o combate ao problema.”

O Presidente do Conselho Económico e Social (CES), Francisco Assis, alertou o Governo para o risco das raspadinhas: “O Governo deveria reponderar o lançamento de uma nova lotaria instantânea, que está prevista no Orçamento do Estado. (…)”

Que sentido faz, num contexto de pandemia e de agravamento das condições económicas e sociais, lançar a Raspadinha do Património Cultural? Em tempo de crise, as adições, também a do jogo, tendem a crescer e são um problema social gravíssimo. Compreendo que seja necessário angariar fundos para a preservação do património cultural, mas dar mais um instrumento letal e legal, para que muitos possam praticar um haraquiri, é imoral.

Voltei ao magnífico livro de Jeffrey Sachs, “O Fim da Pobreza: como consegui-lo na nossa geração”, que, entre os vários passos a dar para acabar com a pobreza e mudar o mundo, considera ser fundamental assumirmos um compromisso pessoal: “No final, porém, a solução está em nós, enquanto indivíduos. Somos nós, trabalhando em uníssono, que formamos e modelamos as sociedades. Os compromissos sociais são compromissos de pessoas.”

Francisco Assis teve a coragem de ser parte da solução, procurando evitar que se atire mais gasolina para a fogueira que está a queimar muitas famílias portuguesas, vítimas da destruição da economia que engrossa as estatísticas da desigualdade social.

Os pobres não precisam de mais uma raspadinha que os fragilize e estigmatize, precisam, isso sim, de um cartão eletrónico que os humanize e autonomize, com um plafond que possam utilizar, na aquisição de produtos alimentares, até que reorganizem e normalizem as suas vidas.

 

[1] https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30039-0

 

(Foto DR)

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Publicado em Opinião