Que Igreja encontrará Francisco?

Os clérigos das ilhas só contam para os governos regionais; os bispos da Guarda, Lisboa, Algarve, Beja, Castelo Branco, Viseu e Lamego estão já no fim do seu tempo episcopal e deveriam resignar logo que Francisco levantasse voo...

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  • 16:35 | Quinta-feira, 06 de Abril de 2023
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Durante os quatro anos de ensino primário tive, na minha sala e na sala ao lado, três colegas que eram filhos de pai incógnito. Dois deles tinham irmãos de mais do que um pai. Não era incomum esta situação, mas na cidade era um anátema.

Até bem tarde, as famílias da urbe ainda tinham criadas de servir, vestidas de preto e rendas bancas nas mangas e no avental, que, não raras vezes, eram entregues ainda crianças. Muitas foram o saco onde os filhos das boas famílias se iniciaram, algumas casaram-se com recrutas do RI 13, já grávidas.

No campo, onde nos morgadios não existia grande terra, mas também não havia fome letífera, os senhores encostavam as moiras aos pipos e assim as desfloravam. As senhoras fechavam os olhos e apadrinhavam as carradas de filhos que iam nascendo para o granjeio.

Muitos jovens só ganharam carta de alforria emigrando, outros viram distinta coisa para lá dos montes quando seguiram, em carreiro, para a Guerra Colonial.


A igreja era o único sítio onde as classes se aproximavam, mesmo que os mais importantes estivessem à frente, sentados, e os outros nos fundos, de pé. O Bispo e o Vigário Geral tinham mais poder que o Governador Civil ou o Presidente de Câmara, recebiam imunidade pela via temporal e intemporal. Padres, muitos, tinham filhos e famílias, mas tudo se mantinha numa espécie de jogo de sombras.

Foi neste Portugal, de pobreza e trabalho no campo, que uma parte significativa dos atuais bispos portugueses nasceu e cresceu, e a infância marca toda uma vida.

Eça de Queiroz criou, em 1875, o retrato do que foi sendo a Igreja Católica até há bem pouco tempo. Amélia apaixona-se por Amaro, encontram-se às escondidas e desse romance advém uma gravidez. Amélia morre e o padre “dá às de vila Diogo”.

Virgílio Ferreira, em 1954, diz-nos de António Santos Lopes, da sua pobreza extrema, da forma como o seminário o moldou, o seviciou, o trucidou na sua personalidade. Trata-se de um cruel retrato em que associou o servilismo a um determinismo imposto por Deus.

Foi no universo eclesiástico de Eça e de Virgílio que muitos dos atuais bispos se formaram enquanto pastores da Igreja. Por isso, é fácil de entender o comportamento da maioria da Conferência Episcopal Portuguesa, após o conhecimento público do relatório que a Comissão Independente elaborou.

Estamos perante uma espécie de recalcamento, o chegar de notícias sobre os abusos faz cada um deles regressar ao tempo da infância e do seminário, impõe uma revisitação que os obriga a fecharem-se em si e nos seus mistérios.

O grande argumento dos bispos é suportado num entendimento muito próprio do Direito Canónico. Estariam, segundo eles, impedidos de comunicar às autoridades civis os crimes que nos seminários, nas igrejas e em instituições de acolhimento iam acontecendo.

Mesmo que haja quem o pense, dizê-lo é um crime. Se olharmos a Concordata de 1940 (também a de 2004) não está, nunca esteve, a Igreja portuguesa autorizada a fechar-se nos seus muros intransponíveis. O artigo 13.º da mesma Concordata quando diz: “Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham conhecimento por motivo do seu ministério” não habilita ao absurdo e à desumanidade.

Os abusos, a pedofilia, a negação de personalidade, práticas que hoje conhecemos, não estão, não podem estar, ao abrigo do “ministério” referido. Desde o Concílio Vaticano II que a Igreja Católica tem bem determinado o campo teleológico do exercício eclesiástico.

 

A questão que se coloca hoje é a seguinte – que Igreja portuguesa se apresentará nas Jornadas Mundiais da Juventude em agosto próximo?

Muitos dos bispos em funções resultaram da escolha de um Núncio Apostólico que por cá esteve durante anos demais. Rino Passigato ficou em Portugal de 2008 a 2019 e cumpriu à risca as regras de uma Igreja fechada, de mal com a sociedade, enclausurada em sacristias e movida por acéfalos leigos.

As suas escolhas recaíram sobre funcionários menores, salvando-se Vila Real, Évora Viana e Bragança, hoje em Braga, sendo que este último se guarda como ponderação e o primeiro como elaboração intelectual.

Os clérigos das ilhas só contam para os governos regionais; os bispos da Guarda, Lisboa, Algarve, Beja, Castelo Branco, Viseu e Lamego estão já no fim do seu tempo episcopal e deveriam resignar logo que Francisco levantasse voo; Os bispos de Coimbra, Santarém, Aveiro e das Forças Armadas são uma inexistência pastoral e uma total nulidade na influência cultural e teológica. Devíamos pedir-lhes uma atitude missionária com a aceitação de trabalho santificado em África, na Ásia ou na América Central; os bispos de Leiria-Fátima e do Porto construíram uma tal caricatura de si mesmos que nada sobra de respeito e utilidade, só uma chamada a Roma onde lhes deveria ser entregue o secretariado de um qualquer dicastério.

Não sei o que dizer do atual Núncio Apostólico, D. Ivo Scapolo. Nomeado em 2019, já esgotou o tempo para conhecer a realidade da coisa portuguesa. Porém, há mais de um ano que as dioceses de Bragança e Setúbal se encontram sem bispo. Ou as recusas são tantas, e ninguém quer ocupar as cadeiras, ou está ensarilhado nos pesos e contrapesos de cada diocese.

A nomeação de D. Delfim Gomes como auxiliar do Metropolita das Espanhas, agrada a D. José Cordeiro, mas teria feito todo o sentido, ainda faz, a sua elevação na diocese de onde provém e onde seria figura relevante nos múnus social e pastoral.

A política de Passigato, até agora mantida por Scapolo, que impediu, e impede, a não nomeação de Monsenhor Rafael Espírito Santo, do P. Miguel Almeida ou do P. João Nélio Pereira, figuras centrais de movimentos relevantíssimos da Igreja em Portugal, para qualquer diocese, faz desmerecer as mudanças que se impõem.

E vai acontecer um erro enorme ao fazer Américo Aguiar patriarca de Lisboa o obreiro das Jornadas. Se há sítio onde faz falta é no Porto, diocese que conhece bem e onde honraria a herança de D. António Ferreira Gomes. Para Lisboa Francisco deveria transferir Tolentino, para Leiria-Fátima deveria vir José Bettencourt, antigo chefe do Protocolo do Vaticano e hoje Núncio na Geórgia. Este trio assumiria uma outra dimensão simbólica e de magistério.

Que Igreja teremos num futuro próximo? Menos de dois mil padres dentro de cinco anos, metade dentro de uma década. A total irrelevância dos que continuarem no exercício pastoral e a laicização de todas as instituições que, sendo misericórdias ou confrarias, se mercantilizarão. Dioceses sem capacidade para manter a estrutura e a (des)agregação de paróquias e dioceses.

Há uma alternativa? Muito estreita, mas há! A da reivindicação de uma Igreja missionária dentro do território português que esteja próxima de cada idoso, de cada pobre, de cada marginalizado. Mas essa Igreja não permite mundanices e muitos padres já não se dão ao caminho da santidade.

Enquanto isso, os cristãos continuam a seguir o Messias, aquele que morreu na cruz para nos salvar e que fala agora a cada um dos nossos corações sem precisar de intermediários. Essa é a Igreja eterna.

Santa Páscoa para todos.

Ascenso Simões

 

 

(Foto do Papa DR)

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Publicado em Opinião