O régulo

Certo é que o almirante não se explica bem, não tem poder de comunicação, é monocórdico, faz dormitar. Trata as palavras com modos de aprendiz de calceteiro. Não entusiasma e não encanta. E, pior do que tudo, confunde e complica.

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  • 17:58 | Segunda-feira, 08 de Dezembro de 2025
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Depois de muito revirar, coscuvilhar conceitos, reler manuais, não descodifiquei o escrito. Ao almirante, puxou-lhe a língua para o ultramar e, sem esmiuçar, inventou o termo “democracia tribal“. Porque uma trabalhadora se queixou, disse que foi ameaçada, logo o militar plantou um sobrado de pinheiros e eucaliptos e fez nascer uma floresta murcha. “Vivemos numa democracia tribal” – disparou.

O tempo vai para invenções, quanto mais estranhas mais notadas, mesmo sendo coxas e insensatas, desprovidas de sentido. Em campanha, permite-se tudo. Da aldrabice à parvoíce. Do importante ao desinteressante. Reduziu a tribo a um corpo estranho, entubado, artificial, comatoso. De uma penada, fez-nos nativos, indígenas, seres primários, movidos por fraquezas e pecados. Interesseiros. E espalhou o medo. Traçou-nos uma certidão de óbito, varreu-nos da ocidentalidade, onde as vidas se regem por outras normas, fora do circuito fechado das seitas e da consanguinidade. Prantou-nos na guarita do quartel, de plantão e firmes numa continência desajeitada, no preparo da tola serventia à messe do oficialato.

Chamar a tribo para aqui, em termos depreciativos, ela que tem tanto de bom, em termos de partilha, pertença, comunidade, porquê? Para quê? Seremos famílias de povos nómadas e bárbaros? Há muito que disse que não gosto do senhor. Parece-me vago, oco. E o discurso presente vai confirmando o que antes era uma sensação. Entaramela as palavras, que não saem escorreitas, fluidas. Tem uma dicção horrível, parece que fala sempre com a boca presa. Mais do que impreparado, é desastrado.

O que é uma democracia tribal? Um conjunto de esdrúxulos que vivem de desejos familiares, pequeninos?  É que não basta lançar umas “boutades“, umas graçolas, é necessário ir mais longe. Tem de se explicar o que se diz. Lançar umas atoardas é fácil. Conheço a democracia popular e a representativa, a parlamentar e a liberal, as orgânicas e as inorgânicas. A tribal, não conheço, nem dela ouvi falar. Só se pretende dizer que somos uns lorpas que se deixam ludibriar, que somos servis e obedientes, acéfalos. Sem iniciativa nem vontade própria? Domesticáveis? Que somos um quintal, povoado de gente esquisita, com usos e costumes estranhos, desenraizados e à parte. Que somos um rebanho de carneiros e de cabras, sem ideias nem pensar. Que, anémicos e castrados, sem vigor nem fulgor, vamos andando, ao sabor do mando e do cajado, encavalitados no redil. Se não é isto, não alcanço o que seja. Porventura, culpa da minha capacidade mediana de entender e de não ver mais do que o visto.


Certo é que o almirante não se explica bem, não tem poder de comunicação, é monocórdico, faz dormitar. Trata as palavras com modos de aprendiz de calceteiro. Não entusiasma e não encanta. E, pior do que tudo, confunde e complica. O azedume com que fala da classe política e dos partidos é preocupante. Coloca ambos num campo de urtigas. Confesso que fiquei estarrecido com a democracia tribal. Uma coisa tão menor, que nem a comunicação social, sempre à cata de incómodos, lhe deu destaque. Concedo que o candidato escorregou no deslize, e depois, sem saída, fantasiou. A verdade é que essa democracia só pode ser um regime de gente sem capacidade de afirmação, enredada em superstições e bruxarias, guiada por sinais de fumo, danças do ventre, urras e tambores, e obediência cega ao soba. Acontece que já não estamos no tempo do Gungunhana, o último imperador do reino de Gaza, território do actual Moçambique, capturado e exibido, em 1896, pelas ruas da capital como um troféu de caça. Mesmo a passo, evoluímos. O almirante candidato é que parece que não.

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Publicado em Opinião