O papel da Phantasia na perceção do futuro II

Na verdade, C. há muito ansiava por se separar da mulher e deixar a morada de família para se estabelecer em Lisboa com uma outra mulher amada. Ansiava havia anos por aquela separação e ponderara não adiar mais a conversa do desfecho.

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  • 20:32 | Sexta-feira, 04 de Dezembro de 2020
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Nos fenómenos de déjà-vu (Freud: 1901a, 1914b; Ferenczi: 1912, 1915), muito estudados por Sami-Ali (Sami-Ali, 2014) na psicopatologia psicossomática, o sujeito tem a impressão de já ter vivido determinado episódio ou de já ter estado num certo lugar ou, ainda, de conhecer uma determinada pessoa. Também nestes episódios está envolvida uma memória, neste caso pré-edípica (Freud, 1936), bem como uma incapacidade temporária para identificar a novidade do momento, as quais resultam na aperceção de uma circunstância familiar.

 

Vinheta clínica: o caso de uma viagem interminável de cacilheiro


O senhor C. habitava em Almada e tomava diariamente o cacilheiro para atravessar o Tejo e ir para sua casa ao final da tarde. Num certo dia o senhor C. demorou inexplicavelmente o dobro do tempo, irritando a sua mulher que o esperava no cais para juntos partirem para um jantar com a família dela. Perturbado, C. afiançava na sessão que o cacilheiro havia sofrido uma demora inusual que o havia impedido de chegar a tempo. Dois horários haviam aparentemente sido suprimidos, embora C. houvesse tomado o barco no seu horário habitual.

C. lembrava-se de levantar os olhos e ver a Praça do Comércio e pensar, constrangido, que logo naquele dia iria faltar ao compromisso com a mulher. A análise tornou claro que C., quando olhara para o cais de Lisboa, não havia discernido se ia para Cacilhas ou se daí estava a voltar. Reparara, numa das vezes, que havia visto o cais do lado esquerdo e, outra, do lado direito. Tivera, nesses momentos, a impressão de já ter vivido aquele episódio.

Na verdade, C. há muito ansiava por se separar da mulher e deixar a morada de família para se estabelecer em Lisboa com uma outra mulher amada. Ansiava havia anos por aquela separação e ponderara não adiar mais a conversa do desfecho. O déjà vu, o já vivido, remetera-nos, na sessão de psicanálise, através da sua associação, para um tempo humilhante de espera sem fim, quando, em criança, sendo alvo preferencial do gozo de colegas, permanecia num canto do recreio, sempre o mesmo, no qual parecia perder a noção de tempo, enquanto esperava, findo o tempo de intervalo, a autorização dos colegas para reingressar na sala de aula. A sua condição era tão humilhante que nem na sala de aula estava a salvo da chacota e da agressão velada daqueles: pontapés, empurrões e beliscões, de tudo era alvo sem que os professores disso se dessem conta. Naquele tempo de infância só desejava voltar para casa e ao seu quarto.

No episódio de déjà vu, o senhor C. escotomizara a perceção do cais de Cacilhas, o futuro próximo, o do encontro com a mulher temida e a sua família, adiando-o mediante a saída fóbica, a de uma viagem interminável sempre de retorno a Lisboa.

A angústia da espera pelo reencontro com o agressor, o já visto emocional, repetia-se agora, na sua sensação angustiada e estranha do já vivido. O já visto, o cais de Lisboa, o qual o senhor C. via sempre ao perscrutar o horizonte, representava, quer o seu desejo de permanecer a salvo, no passado dos bullies, quer, no presente, a salvo da mulher, representando ainda, tanto a urgência de retornar à infância protegida, quanto à sua nova relação com a analista com a qual ensaiava os primeiros passos de realização e de independência de relações de submissão.

 

A investigação destes fenómenos de premonição, déjà-vu e trauma, foi também objeto da investigação neurológica, a qual levantou uma hipótese explicativa de mal funcionamento temporário do lobo temporal (Bartolomei: 2004, 2005; Brown, 2003). Este mal-funcionamento poderia ser devido a quatro grandes ordens de fatores: dois teriam uma etiologia mais neurológica e os outros dois, uma etiologia mais psicanalítica (Freud, 1900, 1901b, 1914, 1920).

Entre os fatores de etiologia neurológica, contam-se, em primeiro lugar, as alterações do estado de consciência desencadeadas, por exemplo, pelo consumo de substâncias psicotrópicas, e, em segundo lugar, o cansaço e a ansiedade, fatores que podem adquirir poder bastante para inativar temporariamente o córtex perirrinal.

De entre os fatores de etiologia psicanalítica, encontram-se, em primeiro lugar, a crença na imortalidade enquanto derradeira representação da impossibilidade de elaboração da frustração e da omnipotência infantil, e, em segundo lugar, os episódios de desrealização, bem como certos sonhos presentes na patologia do trauma, os quais representam um esforço de domínio para, através da tentativa de repetição, criar uma segunda oportunidade de resolução e de enfrentamento da circunstância mal sucedida.

A patologia do trauma é amplamente desenvolvida e estudada na atualidade. O seu mecanismo é descrito como a irrupção na consciência do conteúdo emocional ou representacional do passado. Este conteúdo atravessa as camadas da repressão falhada, gerando a aperceção de uma temporalidade síncrona, ou seja, uma temporalidade na qual há uma perda da noção da passagem do tempo. Estes episódios surgem ao analista como algo que parece conviver com uma assombração do passado no momento presente.

A tomada em consideração destes contributos para a clínica irá ter implicações na importância da conceção do futuro para o adoecer e para a cura. Referimos o tratamento de situações severamente traumáticas e incapacitantes da possibilidade de gerar um novo futuro. Encara-se este novo futuro no seu duplo sentido: o que está para vir, o novo ser, e o que pode ser concebido ou conjeturado em antecipação no processo psicoterapêutico. Este futuro não terá uma função de compulsão de repetição, mas sim uma função de novidade da nova relação.

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

 

BARTOLOMEI, F., Barbeau E., Gavaret M., Guye M., McGonigal A., Régis J., Chauvel P., (2004): «Cortical Stimulation Study Of the Role Of Rhinal Cortex in Déjà-Vue in Reminiscence of Memories», in Neurology, 63 (5), pp. 858-864.

BARTOLOMEI, F. (2005): «Impression de Déjà-Vue?», in Cerveau et Psycho, Vol. 10, juin-septembre.

BROWN, A. S. (2003): «A review of the déjà-vue experience», in Psychological Bulletin, Vol. 129 (3), pp. 394-413.

FERENCZI, Sándor Radó (1912): Um caso de déjà-vu, pp. 197-199, Vol. I, Obras Completas de Psicanálise de Sándor Ferenczi, tradução de Álvaro Cabral, São Paulo, Martins Fontes, 1991.

FERENCZI, Sándor Radó (1915): Uma explicação do déjà-vu, pp. 191-192, Vol. II, Obras Completas de Psicanálise de Sándor Ferenczi, tradução de Álvaro Cabral, São Paulo, Escuta, 1992.

FREUD, Sigmund (1900): A interpretação dos sonhos, Volume V, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1901a): Psicopatologia da via quotidiana, Vol. VI, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1905 [1901b): Fragmento da análise de um caso de histeria, pp. 13-116, Vol. VII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1905 [1901b): Fragmento da análise de um caso de histeria, pp. 13-116, Vol. VII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1915 [1914]): Recordar, repetir e elaborar (Novas Recomendaçõessobre a Técnica da Psicanálise II), pp. 159-171, Vol.XII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1920): Além do princípio do prazer, pp. 11-75, Vol. XVIII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

FREUD, Sigmund (1936): Um Distúrbio de Memória na Acrópole a perturbação da memória na Acrópole. Carta Aberta a Romain Rolland por Ocasião De Seu Septuagésimo Aniversário, pp. 233-245, Vol. XXII, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,1996.

SAMI-ALI, Mahmoud (2014): Convergences. Essais de psychosomatique relationelle, Paris, Éditions EDK/Groupe EDP Sciences.

 

A autora é Psicanalista, Titular em Psicoterapia, Formadora em Psicoterapia Psicanalítica e em Psicanálise em Portugal e na Société Européenne pour la Psychanalyse de l’Enfant, membro da l’Adolescent International Psychoanalytical Association e da European Psychoanalytical Federation. É autora de três livros: de psicanálise, de ensaio psicanalítico e de ficção psicanalítica.

 

(Foto DR)

 

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