A revelação de que um médico dermatologista recebeu mais de 400 mil euros por dez dias de trabalho adicional no Hospital de Santa Maria é, antes de mais, um abalo grave à confiança que os portugueses depositam nas instituições públicas. Independentemente da legalidade do processo — matéria que caberá às autoridades competentes averiguar — o que está em causa é uma ferida profunda na credibilidade do Serviço Nacional de Saúde e, mais amplamente, na ideia de justiça e responsabilidade na gestão do erário público.
Não se trata de inveja, nem de uma crítica leviana ao mérito de quem trabalha mais. Trata-se, sim, de questionar os critérios, os controlos e a moralidade de um modelo que, sendo financiado com o esforço de todos, permite remunerações que ultrapassam os limites da razoabilidade — sobretudo quando comparadas com o salário médio de um profissional de saúde no SNS. O que foi revelado não representa apenas um caso isolado; é o espelho de um sistema onde a falta de fiscalização e a opacidade de processos criam espaço para abusos legitimados por dentro.
Pior do que o montante em causa é o silêncio dos responsáveis institucionais. A ministra da Saúde, pressionada pela indignação pública, limitou-se a reconhecer o dano causado à imagem do SNS. Mas não basta constatar o óbvio. É preciso assumir responsabilidades, rever procedimentos e introduzir mecanismos eficazes de controlo. De igual modo, espera-se da Ordem dos Médicos e da administração do hospital uma resposta clara e célere — não apenas para apurar factos, mas para restaurar o sentido ético da profissão e do serviço público.
Os portugueses não compreendem, nem aceitam, que se invoque a legalidade para justificar o que é, na sua essência, moralmente inaceitável. Numa altura em que se exige contenção, rigor e responsabilidade na administração pública, episódios como este só contribuem para alimentar o cinismo, a descrença e o afastamento dos cidadãos em relação ao Estado.
Não é só uma questão de números. É, sobretudo, uma questão de valores.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, historiador e autor