Morrer só

De ano para ano, após a pandemia, os números pioram. A taxa de internamentos sociais inapropriados cresceu quase 20% nos últimos dois anos, entre 2023 e 2025, tendo os custos disparado 83%, num crescimento quatro vezes superior.

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  • 14:13 | Quarta-feira, 03 de Dezembro de 2025
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Vivemos numa sociedade velhofóbica, com medo de envelhecer. Como será pensar na morte, viver só, até ao fim dos nossos dias, e morrer sem que alguém sinta a nossa falta?

Quando se descobre um cadáver, dias, semanas, meses ou mesmo anos, depois do último suspiro, ainda nos resta o funeral social, assegurado pelo Estado, longe de entes queridos ou amigos, porque já não existem ou porque os laços foram quebrados ao longo da vida.

Vivemos de forma estranha, cada vez mais individualizada, acelerada, ocupada, conectada digitalmente, deslaçada social e humanamente. Numa sociedade envelhecida, com elevados índices de solidão e dependência, assistimos, sem grande reação, ao colapso das redes sociais de apoio.

São cada vez mais as pessoas idosas que morrem sozinhas, sem que ninguém se aperceba. Da inutilidade à invisibilidade, o idadismo faz os seus estragos, sem que nos insurjamos contra esta discriminação e preconceito porque é algo que está normalizado, num silêncio corrosivo e desumanizador. Um fenómeno que os japoneses designam “Kodokushi” que está a alastrar pela Europa, Portugal não é exceção.


Há também quem morra em Portugal, depois de anos numa cama de hospital a aguardar por um lugar num lar. “Há quem aguarde há mais de quatro anos por uma oportunidade para sair do hospital. Muitos morrem antes de serem transferidos.” (Público, 24 de novembro de 2025). Uma realidade que resulta da falta de planeamento estratégico, num dos países que envelhece mais rapidamente, no mundo. A realidade demográfica não é novidade para ninguém, mas continua a ser ignorada. Não se atacam as causas, procura-se responder, paliativamente, às consequências, com resultados catastróficos.

De ano para ano, após a pandemia, os números pioram. A taxa de internamentos sociais inapropriados cresceu quase 20% nos últimos dois anos, entre 2023 e 2025, tendo os custos disparado 83%, num crescimento quatro vezes superior.

A bazuca do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) foi apontada como a tábua de salvação para quase tudo, também para a putativa resolução dos internamentos sociais nos hospitais do SNS. Foi criada, já gorada, a expectativa de criação de 7400 novos lugares para a Rede de Cuidados Continuados Integrados e para a Rede de Cuidados Paliativos (internamento e ambulatório). Afinal, correndo tudo pelo melhor, serão criados 3850 lugares, segundo a última revisão do PRR, submetida pelo Governo a Bruxelas no início do mês. Como lembrou o sociólogo alemão Norbert Elias, “à medida que envelhecem e se vão tornando mais frágeis, ficam cada vez mais isolados da sociedade e, portanto, também do seu círculo familiar e das suas relações. Existem cada vez mais instituições para onde vão viver, entre elas, pessoas idosas que não se conheciam anteriormente.”

Com o avançar da idade, quebram-se laços e vai ocorrendo a morte social da pessoa que fica só, sem opções.

Como será viver, meses ou anos, internado, numa cama de hospital, sabendo que não regressaremos a casa, nem para perto da família, quando existe?

Que sensação tomará conta de nós, no dia em que tivermos que ingressar num lar que servirá de antecâmera à nossa última morada?

Quem decidirá a nossa institucionalização? Seremos nós? Serão os nossos familiares? Será o Estado, se não tivermos quem cuide e se preocupe connosco?

Todas as pessoas que entram num lar de terceira idade sabem, e é impossível não saberem, apesar dos rituais de negação e do jogo do fingimento mútuo, que chegaram à sua última morada.” (Didier Eribon, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, Zigurate, 2025)

Estou plenamente consciente de que poderei ter que viver no quarto de um lar da terceira idade, igual a todos os outros, ao lado de um desconhecido, submetido às regras da casa, independentemente da minha vontade, gosto e história de vida. A imperiosa rotina esmaga qualquer possibilidade de personalização dos cuidados.

Como chegarei ao lar? De carro? De ambulância? Pelo meu pé? Numa cadeira de rodas? Numa maca? Não tenho filhos nem companheira, quem me levará?  

Só espero que, se esse dia chegar, sejam familiares, amigos ou profissionais me digam a verdade e evitem dar início ao jogo do fingimento mútuo. Não me digam que vou ficar bem, que é o melhor para mim ou que virão dias melhores. Restar-me-á aceitar a realidade tal como ela é. Não fingirei, não direi que vai ficar tudo bem. Como poderá ficar tudo bem?

Partilho uma sugestão de série – AMOR VERDADEIRORTP 2 – Série britânica de 6 episódios, um drama envolvente sobre amizade e morte assistida – Philippa Leach, a primeira mulher a ocupar um cargo de chefia na polícia britânica, goza agora de uma reforma confortável, ainda que entediante. Ken, divorciado e antigo veterano das forças especiais sente-se igualmente sem rumo. Namorados na adolescência, Phil e Ken nunca se esqueceram um do outro. Os dois reencontram-se no funeral de um amigo e juntam-se a um grupo de velhos amigos septuagenários. Entregando-se à nostalgia e à bebida, imaginam como seria uma morte digna e brincam que Ken e Phil têm as capacidades necessárias para a proporcionar. Já embriagados fazem um pacto, em vez de se deixarem uns aos outros sofrer um declínio lento e doloroso, quando chegar a hora certa ajudar-se-ão mutuamente a planear uma morte digna. Mas, o que começa como uma brincadeira rapidamente se transforma numa realidade chocante. Um drama envolvente que explora os grandes temas do amor, morte, lealdade, amizade, empatia, solidão e frustração.

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Publicado em Opinião