Em tempos de guerra

A perversa estratégia Russa de asfixiar economicamente a Ucrânia terá um impacto global e matará de fome as populações do terceiro mundo.

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  • 22:10 | Domingo, 05 de Junho de 2022
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“Em tempos de guerra filhos são um peso que trapalha maningue [1].”

(Mia Couto, In Terra Sonâmbula)


Gosto de livros e tenho orgulho em alguns exemplares que tenho autografados. Uma das minhas “preciosidades” é o romance “Terra Sonâmbula” do escritor moçambicano Mia Couto com quem troquei breves e agradáveis palavras na ACERT, em 2004. Foi uma alegria! Um dia feliz!

“Muidinga e Tuahir pararam frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha:

– Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.

– Mas aqui? Num machimbombo[2] todo incendiado?

– Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.”

Machimbombos, já colocados na sucata, estão agora a ser adaptados e transformados em salas de aula, de modo a suprir a destruição de mais de 1000 escolas nos últimos dois anos. Os lugares dos passageiros foram retirados e substituídos por carteiras escolares, a carcaça foi pintada, no lugar do motorista há um quadro e a secretária do professor.

Voltando a Mia Couto: “Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada”.  A violência em Cabo Delgado continua a fazer milhares de deslocados, assim como as catástrofes naturais: cheias e ciclones.  O Gombe atingiu Moçambique três anos depois de os ciclones Idai e Kenneth terem fustigado, respetivamente, as regiões centro e norte do país naquela que foi uma das mais severas épocas chuvosas de que há memória.

A Organização Internacional para as Migrações (OIM) solicitou o reforço do apoio para mais de 700 000 pessoas afetadas pelo ciclone no norte de Moçambique.
Os efeitos do ciclone estão a agravar as necessidades já existentes, uma vez que os serviços e recursos foram sobrecarregados pelas necessidades de 800 000 deslocados internos no norte de Moçambique devido à insegurança na província de Cabo Delgado.

O livro A Fome, de Martin Caparrós, começou quando o jornalista, ao falar com Aisha sobre a bola de farinha de painço que comia todos os dias, lhe perguntou se realmente comia essa bola de painço todos os dias e teve um choque cultural:

“- Bem, todos os dias em que posso.”

Nunca estive em África. Não conheço a realidade do continente, a não ser, à distância, pelos canais noticiosos.  Pude perceber um pouco melhor o que significa “fome verdadeira” e “fome epidémica”, através do olhar humano e sensível de uma amiga que está a trabalhar e a viver em Moçambique. Como diz muitas vezes, é impossível esquecer aqueles olhares, dos meninos dos olhos grandes e brancos…

 

Constato também que não há atenção mediática para as sucessivas tragédias e flagelos humanos em Moçambique e no continente africano. São mortes que não aparecem nos jornais. Nos jornais sai o que não é habitual, o que é extraordinário, como a guerra na Ucrânia. A guerra na Europa é um cisne negro, um acontecimento inesperado, tendo honras de prime time há 100 dias.

A vida humana não tem o mesmo valor nas distintas geografias. A invisibilidade da geografia da fome, no continente africano, pode agravar-se pelo mediatismo do conflito em solo europeu. A Rússia está a bloquear a exportação de cereais. As consequências serão globais e especialmente trágicas em África, pelas suas vulnerabilidades endémicas.

A perversa estratégia Russa de asfixiar economicamente a Ucrânia terá um impacto global e matará de fome as populações do terceiro mundo.

 

 

[1] Maningue: muito, demasiado
[2] Machimbombo: autocarro

 

(Fotos DR)

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