Ele sonhou em tornar-se algo

No mês passado, Portugal participou numa ação da Europol contra o tráfico de crianças, na qual foram detidas mais de 130 pessoas. O Conselho da Europa alertou para o aumento do tráfico de menores e da sua exploração sexual na Europa.

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  • 9:36 | Terça-feira, 19 de Julho de 2022
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É provável que já tenha ouvido falar em Mo Farah. Se gosta de atletismo e acompanha a modalidade, conhecerá os feitos deste atleta britânico que venceu os 5.000 e os 10.000 metros, nos campeonatos europeus; conquistou 4 medalhas de ouro olímpicas e sagrou-se, por 6 vezes, campeão mundial. Um atleta da elite mundial que conquistou o estrelato e um lugar na história da modalidade.

Será menos provável que conheça as suas origens e trajeto de vida, desde que saiu da Somália, até receber os aplausos nas pistas de tartan nas grandes provas internacionais. Recentemente, através de um documentário da BBC, o mundo ficou a saber, na primeira pessoa, que este homem, então criança, foi traficado da Somália, no leste africano, para a Grã-Bretanha, quando tinha 8 anos e foi obrigado a trabalhar como escravo doméstico.

“Quando eu tinha quatro anos, o meu pai foi morto na guerra civil, como família fomos dilacerados. Fui separado da minha mãe e trazido ilegalmente para o Reino Unido sob o nome de outra criança chamada Mohamed Farah”.

Com o acordo celebrado entre o Reino Unido e o Ruanda, no valor de 120 milhões de libras, este (agora) campeão britânico poderia ter sido um dos infelizes contemplados com uma viagem de ida, sem volta, engrossando o contingente das deportações. Como escreve Jere Longman, no The New York Times, “ele sonhou com tornar-se algo”. Corajosamente, decidiu contar o seu percurso simultaneamente triste e inspirador. “Eu não fazia ideia de que havia tantas pessoas que estão a passar exatamente pela mesma coisa que eu. Isso só mostra o quão sortudo eu fui. O que realmente me salvou, o que me fez diferente, foi que eu podia correr”. O atleta teve a sorte de ser apoiado pelo professor de Educação Física, Alan Watkinson. Quando, aos 12 anos, foi, pela primeira vez, à escola, o professor ajudou-o a pedir a cidadania britânica (ainda que com o seu nome falso). Com este ato corajoso e inspirador devolve a esperança a milhares de pessoas e pressiona o governo britânico que tem sido pródigo, nos últimos anos, em sucessivos escândalos e inconseguimentos.


Em Portugal, com base no Relatório “Tráfico de Seres Humanos 2020”, do Ministério da Administração Interna, foram sinalizados 29 menores e 186 adultos como (presumíveis) vítimas. No que aos menores diz respeito, sobre o tipo de exploração, registam-se presumíveis vítimas de tráfico para fins de adoção; para fins de exploração laboral/servidão doméstica; e indefinida (dados protegidos por segredo estatístico). Relativamente aos adultos, serão presumíveis vítimas de tráfico para fins de exploração sexual e exploração laboral.

O tráfico de seres humanos é extremamente complexo. Uma realidade bárbara e indigna que levou o Papa a denunciar estes atos de inumanidade, associados às migrações: “Frequentemente, os migrantes são vítimas do tráfico de pessoas. Entre outras causas, isto acontece pela corrupção daqueles que estão dispostos a fazer qualquer coisa para enriquecer. O dinheiro dos seus negócios sujos e dos seus delitos é dinheiro manchado de sangue. Não estou a exagerar: é dinheiro manchado de sangue”.

No mês passado, Portugal participou numa ação da Europol contra o tráfico de crianças, na qual foram detidas mais de 130 pessoas. O Conselho da Europa alertou para o aumento do tráfico de menores e da sua exploração sexual na Europa. Portugal é, em grande medida, um país de destino de vítimas de tráfico de seres humanos, sendo poucos os casos em que é o país de origem. A guerra na Ucrânia e a crise colossal – social, económica e política – que se abate sobre o povo brasileiro são dois exemplos flagrantes da atenção redobrada que o nosso país deverá dar no acolhimento de quem nos procura.

Todos nós, na qualidade de cidadãos, devemos cooperar, estar atentos e denunciar situações que possam indiciar estes crimes, contribuindo para a eficácia e eficiência dos mecanismos nacionais de prevenção, sinalização, identificação, assistência e proteção de vítimas de tráfico de seres humanos. Este crime hediondo só é combatível com o apoio inequívoco de todos, desde o cidadão anónimo até aos mais altos responsáveis nacionais e internacionais.

 

(Fotos DR)

 

 

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Publicado em Opinião