E andei eu 26 anos a ganhar ‘bons’ hábitos…

Em breve, de seres gregários passaremos a seres solitários. O colectivo transformar-se-á em inimigo público. A mensuração dos nossos gestos tirar-nos-á a naturalidade. O imprevisto será banido. As nossas estruturas mentais serão formatadas pela singularidade inquietante do medo. Os nossos rostos, tapados com as máscaras, inexpressivos, deixarão de sorrir…

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  • 11:30 | Segunda-feira, 26 de Outubro de 2020
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Nunca pensei desistir de entrar num café, para a bica matinal, por se encontrar gente a mais lá dentro.

Esta mudança de comportamento tão radical nas minhas rotinas é o fruto de toda a obsessão que temos vindo a criar, auto instalando mecanismos de receio, medo, aversão e negação.

Os hábitos de há muito dificilmente se perdem e, a dose de cafeína matinal com a qual se começa um dia de trabalho, é algo tão enraizado nos nossos actos que nem nele nos damos ao trabalho de reflectir.


O dia começa cedo e, mal chegamos fora da porta do prédio onde habitamos, atravessamos a rua e entramos no café do costume. No balcão, a empregada que já nos conhece deste momentâneo e quotidiano contacto, logo põe a bica em cima, meia chávena, sem açúcar, servida com um bem-disposto e sorridente “bom dia”.

Mas hoje, ao entrar, de forma inconsciente e automática, virei costas, saí e desisti da minha rica bica. No interior do café, segundo os padrões assimilados, havia gente a mais… ou seja, estavam talvez dez ou doze pessoas, num espaço que até é amplo, safe & clean.

Cá fora arrependi-me e critiquei-me pela irrazoabilidade da atitude. A cafeína fez-me falta. A alteração do meu comportamento, com estas defesas intempestivas, chocou-me. Mas mais me preocupa aquilo que virá a seguir em contexto de rejeição, ou das rejeições que inconscientemente passarei a adoptar.

Hoje foi o café matinal, amanhã será, por exemplo, a gelataria do fim da tarde ou a livraria onde ia todas as semanas e onde agora vou menos de uma vez por mês. Depois serão as pessoas, os nossos conhecidos, os amigos, aqueles que nos são queridos, com quem evitaremos estar.

Estes mecanismos de autodefesa serão, provavelmente, aqueles que as autoridades sanitárias querem que interiorizemos como correctos e aceitáveis. Não duvido da bondade e da necessidade dessas práticas… mas à custa de quê, de quem? Como será o mundo novo, a médio prazo?

Em breve, de seres gregários passaremos a seres solitários. O colectivo transformar-se-á em inimigo público. A mensuração dos nossos gestos tirar-nos-á a naturalidade. O imprevisto será banido. As nossas estruturas mentais serão formatadas pela singularidade inquietante do medo. Os nossos rostos, tapados com as máscaras, inexpressivos, deixarão de sorrir… até o coquette baton que nos dava garridice aos lábios perdeu a sua razão de ser. Rostos tapados como as muçulmanas, já não pela religião, mas sim pela prevenção, sempre com o gel na carteira para usar depois de abrir uma porta, mexer em dinheiro, usar o elevador ou o multibanco, descarregar um autoclismo…

Estamos com 10 meses desta nova vivência. O que virá a seguir?

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