Costa é um reformista?

Costa é tão entendido no sentir dos portugueses quanto o foi D. João I, D. João II, D. João IV, Salazar, Mário Soares ou Cavaco Silva. É exatamente por isso que o ex-Presidente o odeia como poucos.

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  • 10:48 | Terça-feira, 13 de Dezembro de 2022
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Maria João Avillez é uma voz respeitada no panorama jornalístico português. Tudo o que escreve ou diz merece ser lido e ponderado, é relevante para o centro-direita que tarda no encontro de uma solução de governo.

Em entrevista ao Diário de Notícias (DN, 08.12.2022), Avillez diz bem de um tempo que se está a extinguir, de uma visão de país que descolou da realidade, uma elitização da vida quotidiana. Foi relevante, na conversa com Rosália Amorim, o seu pensamento sobre a Igreja Católica a partir da excelente entrevista que fez ao Papa Francisco, mas a entrada pela política da atualidade revelou-se mera réplica de argumentos caídos em desábito.

Costa, diz, não tem instinto reformista. Que com o Programa Recuperar Portugal (PRR) e a maioria absoluta poderia reformar o Estado, mas não o vai fazer.


Há, em Avillez, um problema ontológico – o que seria reformar o Estado? Acreditamos que seria a privatização de vastos setores sociais, a transformação do aparelho administrativo público em meras excrescências. Acreditamos que seria o espremer os setores da educação, da saúde, da solidariedade, da habitação, permitindo a liberdade de escolha paga pelo Estado que autorizasse o florescer do ensino privado, a retração do SNS aos pobres mais pobres, ou a limitação das reformas a um mínimo de sobrevivência que valorizasse os fundos de pensões.

Há, contudo, um grave problema – essas obsessões, depois da crise de 2008, da pandemia e da guerra na Ucrânia caíram todas por terra. A última experiência durou um pouco mais de um mês, em Inglaterra.

Avillez fala da maioria que Costa tem hoje no parlamento. Em minha opinião, essa maioria é muito frouxa. Se o PS tem uma maioria deveria ser para a exercer, mas, não raro, recua. Em muitas circunstâncias com um só reparo ou um só enlevo dos piquenos partidos à direita ou a esquerda. Há uma espécie de síndrome cavaquista que está a impedir o PS de fazer o seu caminho como deve ser. Porém, essa maioria não seria nunca o agrado de Avillez, o seu padrão mental está a anos luz do de Costa, mesmo que, em tempos, Maria João tenha gostado muito de António.

A direita da jornalista–referência é incompatível, no tempo atual, com o chefe do governo, tudo porque Costa entende muito bem os portugueses, foi esse entendimento que lhe deu o governo depois de uma derrota, que lhe deu uma vitória depois de um governo anacrónico, que lhe deu uma maioria absoluta, depois de uma ausência de rumo à direita e à esquerda. Costa é tão entendido no sentir dos portugueses quanto o foi D. João I, D. João II, D. João IV, Salazar, Mário Soares ou Cavaco Silva. É exatamente por isso que este último ex-Presidente o odeia como poucos.

Mas vamos ao que interessa. O PRR tem como atenção central a tal reforma do Estado. Vejamos. O Sistema Nacional de Saúde, não só o Serviço Nacional de Saúde porque há uma previsão do reforço dos contratos e das convenções, assume a reforma da governação dos hospitais, a reorganização e o reforço dos cuidados de saúde primários e da estrutura nacional de saúde mental. A juntar a isto, temos a reforma da rede nacional dos equipamentos sociais, a ampliação dos programas de combate à pobreza e o plano de inclusão às pessoas com deficiência. Somando às enormes mudanças no âmbito social, aponta-se para o maior programa de habitação das ultimas quatro décadas, resolvendo, de vez, a exclusão, a pobreza energética e os espaços de marginalização pela excessiva concentração. Saúde, solidariedade, habitação, 4.915 milhões de euros de investimento só nestes três domínios de políticas públicas.

Mas o PRR avoca o que de mais relevante importa para o desenvolvimento humano e económico – a aposta na educação e na formação. A agenda do trabalho digno, opção pelo que dificilmente sairia de uma agenda apoiada por Avillez. A promoção da igualdade entre homens e mulheres no campo salarial, a redução de entraves ao exercício de profissões reguladas e, o mais importante, a refundação de estruturas e programas na educação e formação, assumem uma outra área das reformas que levará a uma mudança da organização do trabalho e, obrigatoriamente, ao aumento da produtividade. Este investimento global na qualificação, 1.324 milhões de euros, deve ser somado ao apoio global direto ao fomento empresarial, 2.914 milhões de euros, o maior bolo de todo o PRR. E é aqui que a opinião publicada mais engana os portugueses – para além de todo o investimento que é feito em todas as áreas já referidas, que vai de forma indireta para as empresas, há, ainda, 4.238 milhões de euros que saem diretos, sem burocracias e sem intermediários, para a economia real.

Mas o país vive os grandes problemas da transformação climática, energética e digital. É exatamente aqui que o PRR aponta os objetivos mais acertados. As políticas do território: mar, infraestruturas, floresta e gestão da água, assumem o encargo de 1.947milhões de euros; a descarbonização da indústria, a bioeconomia, a eficiência energética, as novas energias verdes e a mobilidade transferirão, ainda e também diretamente, para a economia sem qualquer intervenção pública, mais 2.807 milhões de euros.

Por fim a transição digital. Os investimentos, que refletem as opções, dividem-se em quatro campos: Valorização da digitalização das empresas e melhoria do ambiente de negócios, serviços públicos, justiça e educação. O investimento ascende a 2.461 milhões de euros, sendo que 917 milhões se destinam à valorização direta do tecido produtivo.

Explicado o PRR, com pormenor, talvez haja novas ideias e outras visões sobre as reformas. Mas o que está a fazer com o que PRR pegue de ouvido e seja um campo de batalha político?

Há três razões que estão a implicar com a boa execução dos fundos europeus, incluindo os quadros comunitários normais. A primeira razão é a que se prende com a nossa máquina pública. José Mendes, antigo responsável pela área, indicou há uns meses, também no DN (08.05.2022), essas mesmas fragilidades; a segunda razão, é a que se prende com o aquecimento da economia, com as implicações nos fornecimentos e na logística que vem do período da pandemia e com os preços das matérias primas; a terceira razão é a incompreensível burocracia e conflitualidade que decorre do Código dos Contratos Públicos.

Para o primeiro grande bloqueio, importa uma estrutura de gestão mais flexível, ampliada, a trabalhar 24/24, usando inteligência artificial na apreciação das candidaturas e que saiba responder, em emergência, à necessidade de atualização dos preços de mercado; a segunda grande dificuldade deve permitir a flexibilização dos consórcios, licenças e autorizações com rapidez, por parte das administrações públicas, para as qualificações das empresas; o terceiro bloqueio faz-se com três medidas – a flexibilização das regras de contratação, a criação de equipas de inspeção regionais de fiscalização e a conceção de três unidades regionais, a partir da PGR, de investigação de contratos e combate ao crime.

Avillez, ouviu dizer que o PRR era mau. Talvez possa ficar esclarecida, agora! Mas há problemas na sua concretização, como há nos restantes programas. Para isso há novas e urgentes medidas a tomar, avaliações que não podem ser mais adiadas.

 

Ascenso Simões

 

(Fotos DR)

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