Combatamos a desclassificação social

Repare, caro leitor, que os dados enunciados são respeitantes a 2018 e 2019, anos pré-covid-19. Apesar da trajetória de melhoria que se vinha a registar, depois da crise financeira, os dados ainda eram avassaladores, mais de um quinto da população portuguesa vivia em situação de pobreza e exclusão social.

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  • 12:55 | Terça-feira, 16 de Fevereiro de 2021
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A população em situação de pobreza ou exclusão social em Portugal atingia o alarmante número de 2,2 milhões de pessoas, 23,3% da População Total, em 2018.”

(INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, 2018)

A Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito do dossiê temático Portugal Desigual, refere:


“Em 2018, as famílias monoparentais e as famílias com três ou mais crianças dependentes eram as que apresentavam taxas de pobreza mais elevadas (33,9% e 30,1%, respetivamente). O aumento da incidência da pobreza nas famílias monoparentais, mais 5,7 p.p. do que no ano anterior, constitui um fator de preocupação acrescida quanto às condições de vida deste grupo social.”

“A proporção da população empregada em situação de pobreza aumentou de 9,7% para 10,8%.”

“Em 2019, 2,2 milhões de pessoas (21,6% da população) encontravam-se em situação de pobreza ou de exclusão social em Portugal.”

Repare, caro leitor, que os dados enunciados são respeitantes a 2018 e 2019, anos pré-covid-19. Apesar da trajetória de melhoria que se vinha a registar, depois da crise financeira, os dados ainda eram avassaladores, mais de um quinto da população portuguesa vivia em situação de pobreza e exclusão social.

Entrevistado por Bertrand Richard, o conhecido sociólogo e filósofo francês, Gilles Lipovetsky, ao esclarecer o que entende por «espiral decetiva» (A Sociedade da Deceção, 2017, Edições 70), conclui que, contrariamente ao expectável, “As desigualdades aprofundam-se, a mobilidade social recua, o elevador social avaria. Por todo o lado os extremos ressurgem e reforçam-se, com o sentimento, no seio dos mais desfavorecidos e mesmo nalgumas franjas da classe média, de uma desclassificação social, de uma fragilização do nível de vida, de uma nova marginalização.”

Com o impacto da crise sanitária, provocada pela pandemia, quantos portugueses estarão neste momento em situação de pobreza e exclusão social? Quão colossais serão as consequências sociais e económicas?

O Governo, como resposta ao primeiro confinamento, reforçou o Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC), coordenado pelo Instituto da Segurança Social e co-financiado pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas. O POAPMC, gradualmente, viu a sua capacidade duplicada, passando de 60 mil pra 120 mil o número de beneficiários. Existem ainda outra respostas de apoio alimentar, como as cantinas sociais ou os apoios pontuais, no âmbito dos Serviços de Ação Social. As respostas existentes são, neste momento, insuficientes para fazer face a todas as solicitações no território nacional. Com o prolongamento do estado de emergência, as necessidades sociais tendem a adensar-se e, consequentemente, avolumar-se-ão as desigualdades sociais e é expectável o indesejável ressurgimento de bolsas de pobreza.

Se os “novos pobres” e a “pobreza envergonhada” devem ser observadas e eficazmente abordadas, é também essencial a implementação de novas medidas que respondam aqueles que regressam à pobreza porque tinham empregos precários, foram afetados pelo layoff e foram despedidos.

Regressemos a Lipovetsky: “Não é difícil imaginar a amargura dos jovens que estão durante anos e anos inativos ou que andam de biscate em biscate, de estágio em estágio, sem acesso à sociedade do hiperconsumo e, definitivamente, sem ganhar autoestima. No outro extremo da vida, com o desemprego persistente das pessoas com mais de cinquenta anos, nós observamos também alguma coisa de profundamente decetivo: como não ser amargo quando se sente que foi «lançado para o lixo depois de usado», quando se sente «desperdiçado», inútil para o mundo?”

“A necessidade aguça o engenho”, assim diz o povo e tem razão. Tenhamos o engenho, a arte e o arrojo, imune às “cegueiras ideológicas”, de fazer deste momento complexo uma oportunidade para a construção de um novo paradigma de intervenção social que combata, com todos os recursos disponíveis um problema que não é conjuntural, mas estrutural da sociedade portuguesa: a pobreza. A criação de um cartão recarregável, que permita às famílias fazerem a gestão das suas compras, autonomamente, pode ser um primeiro passo em direção à dignidade e um trunfo importante no combate ao estigma.

“A humanidade contemporânea fala a muitas vozes e sabemos hoje que assim será por muito tempo ainda. A questão central do nosso tempo é como transformar esta polifonia em harmonia, impedindo a sua degenerescência em cacofonia.” (Zygmunt Bauman, A Vida Fragmentada: Ensaios sobre a Moral Pós-Moderna, Relógio D’Água, 2007)

 

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Publicado em Opinião