Ballaké Sissoko & Piers Faccini encantaram o público do Teatro Viriato, na estreia em Portugal do álbum “Our Calling”

Os Griots (“griôs” ou, no feminino, griottes) não são meros tocadores de kora, mas,  simultaneamente ou de “per si”, são também contadores de histórias, historiadores, genealogistas, poetas, cantores, músicos e etnomusicólogos, embaixadores, viajantes e recolectores do conhecimento, guardiões da memória e das tradições orais da rica cultura dos seus países...

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  • 12:01 | Domingo, 28 de Dezembro de 2025
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Que privilégio ter podido assistir em Viseu a um concerto deste duo de músicos extraordinários! Durante mais de uma hora, ficámos cativados por melodias inusitadas, quase em transe, embalados pelo timbre suave e quente da voz de Piers Faccini, com palavras sussurradas como se estivéssemos todos à volta de uma fogueira numa fria noite londrina, ou numa aldeia do Mali, ou em Fornos de Algodres, acompanhado pela harmonia da sua guitarra e pela Kora mágica de Ballaké Sissoko.

Não pude deixar de me lembrar da música do mestre Ali Farka Touré, cantor e guitarrista, que levou ao reconhecimento internacional da música do Mali como a matriz do blues afro-americano (“o DNA do blues”, como reconheceu Martin Scorsese), umbilicalmente ligada com a kora (Cora ou Corá, se quiserem latinizar ou pronunciar à francês, uma das línguas oficiais do Mali, a par do Bambara) de Toumani Diabaté, outro músico virtuoso descendente de uma família de executantes de kora, que teve o expoente máximo no seu pai, Sidiki Diabaté (c.1922-96) de quem Toumani foi ouvinte atento.

Ouço muitas vezes esta música encantatória (o álbum “Ali and Toumani” a sua última gravação conjunta a seguir ao “In the heart of the moon”, vencedor de um Grammy),  mas nunca os vi a tocar ao vivo. E já não poderei ter essa felicidade, uma vez que Touré morreu em 2006, aos 67 anos de idade, e Diabaté morreu no ano passado, 2024, por falência renal, aos 58 anos. Ali “Farka” Touré ficou mais conhecido nos EUA e na Europa  pela sua parceria com Ry Cooder (o guitarrista e produtor americano famoso pela banda sonora com “slide guitar”, estilo blues, do filme “Paris,Texas”, de Wim Wenders), no álbum “Talking Timbuktu” (1994). Toumani Diabaté gravou com Ballaké Sissoko, o seu terceiro álbum, “Nouvelles Cordes Anciennes”, em 1999.


 

Toumani Diabaté e Ballaké Sissoko são dois génios da música, ambos virtuosos da kora, essa espécie de harpa de 21 cordas, feita com uma cabaça, pele de vaca, chaves de madeira, instrumento místico e mítico, símbolo da cultura mandingue, que alguns dão como tendo origem na região do Gabu, Guiné Bissau, mas que é transversal ao Mali, Senegal, Gâmbia e mais recentemente também tocada no Burkina Faso.
Diabaté e Sissoko são herdeiros de duas linhagens de tocadores de kora. Piers Faccini contou-nos, no concerto no Teatro Viriato, que ouviu pela primeira vez tocar kora, em Londres, tinha ele 18 anos. Mais tarde, Ballaké descobriu que esse homem que Piers tinha ouvido a tocar kora era o seu próprio pai, Djelimady Sissoko, um famoso jeli (griot) em cuja escola ele aprendera a tocar e de quem herdou o lugar no Ensemble Instrumental National du Mali, aos 14 anos. Ballaké soube aliar às estruturas rítmicas tradicionais da África Ocidental, apropriadas à dança, alguns estilos musicais dos cordofones europeus (colaborou com instrumentistas famosos, como o violoncelista francês Vincent Segal, que tocou no seu álbum “At Peace”, de 2013), o que lhe valeu vários prémios internacionais, como o “Victoires du Jazz para Álbum Internacional do Ano”, em 2010. 

Os Griots (“griôs” ou, no feminino, griottes) não são meros tocadores de kora, mas,  simultaneamente ou de “per si”, são também contadores de histórias, historiadores, genealogistas, poetas, cantores, músicos e etnomusicólogos, embaixadores, viajantes e recolectores do conhecimento, guardiões da memória e das tradições orais da rica cultura dos seus países (o antigo império do Mali, entre 1235 e 1670, era rico em ouro e pedras preciosas e foi um dos mais poderosos da Idade Média, criou uma importante civilização que ia até ao Sahara Ocidental), verdadeiros mestres que transmitem o conhecimento de geração em geração através de canções e narrativas, utilizando o/a Kora e o Balafon (o precursor africano do xilofone, feito de teclas de madeira e ressonadores de cabaças amarradas com couro e cordas, semelhante à Mbila tocada em Moçambique e outros países africanos e até na Indonésia).

Certamente levada pelos escravos que os portugueses (campeões europeus do tráfico negreiro) levaram para o Brasil, surgiu na Bahia, em 2006, a “Ação Griô Bahia”, um projecto do Programa Cultura Viva (do Ministério da Cultura) que liga mestres da tradição oral (griôs) com escolas e comunidades para “fortalecer a identidade cultural, a ancestralidade e a educação através da história, música, dança e saberes ancestrais”, visando construir uma política nacional de valorização desses saberes dos descendentes dos africanos e dos nativos. Esse movimento que mobilizou 27 deputados de 19 estados do Brasil e mais de 20 mil apoiantes, culminou na Lei Griô que integra o conhecimento dos griôs no formal currículo,  formando professores e educadores populares em 600 pontos de cultura, escolas e universidades em todo o país, havendo já mais de 700 griôs e mestres bolsistas da tradição oral do Brasil.

Desculpem a deriva, mas gosto de partilhar com os leitores o que aprendi ao investigar sobre esta música incrível. De regresso ao concerto, recordo os momentos em que Faccini (que além de cantor e músico, também é pintor, poeta e autor de um livro infantil que ele próprio ilustrou), filho de mãe inglesa e pai italiano, nos brindou com algumas tarantelas, a música do sul de Itália, de ritmo vertiginoso, que surgiu inesperadamente na coda de uma canção de embalar, “Ninna Ninna” (que consta do álbum em apresentação “Our Calling”).

Também me merece um destaque especial, entre as inolvidáveis canções deste álbum/concerto, a canção “Borne on the Wind” (uma das duas, a par de “By your hand”, com letra exclusivamente de Faccini ( já que todas as outras canções são da autoria de ambos os músicos) , que fala da viagem de um rouxinol que voa entre a África e a Europa ao virar das estações, numa alegoria às naturais migrações humanas ao longo da história da humanidade que, nos nossos dias, surgem estigmatizadas e até criminalizadas por governos e partidos de extrema-direita, que alastram a sua ignorância e o seu ódio xenófobo até à direita e ao centro político do ocidente e da Europa dita civilizada.

 

 

Naquele 6 de Dezembro, dois pássaros gigantes, mas sereníssimos, voaram em graciosos adejos pelo palco do Teatro Viriato, enchendo com o seu melodioso chilrear os nossos corações a palpitar de emoção.

(Fotos Carlos Fernandes)

 

Carlos Vieira e Castro

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Publicado em Opinião