Arte de pintar…e apagar

Dizia o maestro, compositor e militante comunista Fernando Lopes-Graça, que “a arte não é adorno da boa sociedade, mas expressão fremente da vida”.

  • 14:35 | Segunda-feira, 29 de Maio de 2017
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Dizia o maestro, compositor e militante comunista Fernando Lopes-Graça, que “a arte não é adorno da boa sociedade, mas expressão fremente da vida”.

Se isto é verdade para qualquer expressão artística (da música clássica à escultura, passando pela pintura e fotografia), por mais erudita que seja a forma como é apresentada, sê-lo-á porventura ainda mais para aquela arte que nasceu nas ruas, a chamada Street Art de que o grafiti é a mais famosa expressão, mas não a única.

Assumindo desde o início um carácter transgressor, a Street Art  (nunca perdendo por completo esta sua natureza) tem vindo a transpor barreiras e a afirmar-se como disciplina artística de corpo inteiro.


Em alguns locais do País, são as próprias autarquias a dinamizar e potenciar o talento dos street artists para requalificar bairros e elevar a qualidade de vida das suas populações. Exemplo mais notável é o do Bairro da Quinta do Mocho, em Loures, transformado numa autêntica galeria a céu aberto. Em muitos edifícios de habitação, as empenas estão transformadas em verdadeiras obras de arte. Muitas delas, para além da sua qualidade estética, afirmam identidades, valores, sonhos, ideais, causas. Em Loures, concertos, teatro, dança, fotografia, stand up comedy, workshops, exposições, jogos e programação infantil dão realidade à Arte Urbana, num festival que se ergue não para a população mas com a população. Recuperam-se espaços mas sem descaraterizar os espaços – afinal cada prédio tem a sua história!

Em Viseu, agora transformada, nas palavras do presidente do município, em “cidade criativa e feliz”, também há um festival que passa por ser “de rua” desde 2015. Importa compreender aquilo de que estamos a falar:

1.  O evento inclui comida de rua, música de rua, pintura de rua (no singular!);

2.  Instalado no Mercado 2 de Maio (por obsessão, em vez da Rua Direita, da Rua Formosa ou outra) o lugar de encontro oferece ao visitante, bebidas e comidas que os bares ali instalados, que animam o espaço durante os 365 dias de cada ano também oferecem;

3.  Em 2015, a organização convidou a participar na “pintura de rua” sete criadores que, nas palavras de Almeida Henriques, “foram responsáveis por imortalizar nas paredes marcas identitárias de Viseu, a cidade-jardim vinhateira.” Entre eles, Fidel Évora;

4.  A propósito deste evento, fui porta voz na Assembleia Municipal de alguns jovens do Concelho que me manifestaram o seu profundo descontentamento por não terem sido chamados a participar nesta iniciativa. Juntei ao relato a proposta da sua inclusão em edições futuras. Por essa via, em 2016, quatro criadores locais foram convidados;

5.  Em 2017, “o evento mais cool do ano” (?) tratou de ilustrar a cidade-jardim (não a cidade região ou o concelho), com o deus do vinho (numa instituição de apoio a portadores de deficiência (??), uma popa e um coelho bravo, um pavão, o Capitão Almeida Moreira (sem legenda, crianças do 1º Ciclo têm dificuldades em o identificar) pétalas de amores-perfeitos e uvas, muitas uvas, que o vinho é que instrói..!

6.  O evento tratou também da “limpeza” do fantástico trabalho de Fidel Évora, na parede do estacionamento da Silva Pereira, numa atitude que merece ser refletida. Não houve, por parte dos organizadores do Festival, nenhuma comunicação ao autor sobre a intenção de apagar a obra. Qualquer que seja o motivo invocado para o “apagamento” a possibilidade de a obra ser refeita pelo autor devia ter sido de imediato considerada. A menos que a origem e a singularidade do nome do artista, a sua origem nacional e o tema social da obra (um negro tirando um espinho do pé) não se adequem ao (pre)conceito de “cidade criativa e feliz”, dos promotores.

Ainda, algumas perguntas inevitáveis:

1.  Qual o critério para escolher os espaços a intervencionar? Que preocupação existe em respeitar a identidade cultural da Street Art?

2.  A arte é Pública, paga com dinheiro público, mas adorna quintas privadas – com que legitimidade? Para que fruidores?

3.  O tema restringia-se à cidade e nas palavras do Presidente, confere maior “identidade aos seus lugares”, “é um roteiro identitário e com expressão” mas alunos e pais da Escola da Ribeira perguntam quem é o senhor que agora os “identifica”, dizem não se reconhecer na obra, estranham não ter sido ouvidos na decisão deste registo de identidade. O que entenderá o edil por “identidade”?

4.  E a respeito da especificidade da street art, como integrar a música de Rodrigo Leão (não está em causa a sua qualidade) a música pop e disco? Então não se trata de Arte de Rua?

Na resposta possível a todas estas questões, uma certeza nos fica: a modernidade não se instala por decreto. Viseu tem uma identidade própria que é preciso respeitar, dinamizar e fazer evoluir. A obsessão doentia de “modernizar” a qualquer preço, acaba sempre na importação de pacotes comprados que, sendo meros instrumentos propagandísticos para os “inovadores à força”, facilmente se apagam como se não tivessem autor.

O verniz estala quando os gestos ganham visibilidade. Na realidade, para Almeida Henriques e os seus múltiplos assessores, a verdadeira essência da arte de rua é estranha senão mesmo aversiva. Dificuldades ideológicas mal disfarçadas. No afã de ver Viseu como ela não é, como se fora uma grande capital onde a urbanidade sucedeu ao ruralismo (que valoramos em muitas das suas faces), Viseu, criativo, inventou uma nova modalidade artística, rara, que seletivamente apaga o que é diferente.

Em alguns países, o gesto de apagar obras de arte de rua, não apenas é entendido como vandalização de uma obra de arte como é crime.

Em Viseu “quem manda, pode”.

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Publicado em Opinião