Antes um pé no chão do que as duas mãos – De Santa Comba Dão a Viseu e regresso

Quem se der ao trabalho de ler a narração da viagem feita há um ano, verifica que decidimos, por unanimidade, abandonar a o restaurante do papagaio.

  • 21:25 | Quarta-feira, 19 de Fevereiro de 2020
  • Ler em 2 minutos

Em Novembro do ano passado, ao reler as memórias de Aquilino Ribeiro, encontrei dez linhas nas quais o escritor relembra a sua ida para o Seminário de Beja por volta de 1900, de onde sairia por expulsão. A linha do Dão tinha sido inaugurada há uma década, celebrada por mais de quinze mil pessoas, que receberam em festa o primeiro comboio em Viseu. Apesar da novidade, a lagartixa de ferro circulava por aquelas paisagens rurais com a lentidão que ainda hoje sentimos nos passeios de bicicleta. Aquilino Ribeiro tomou o comboio num dia luminoso e tépido, igual ao que nos calhou hoje, cento e cinte anos depois. «E por uma tarde suave, destas que já são raras nos princípios do Inverno por culpa dos nossos sentidos ou da eclíptica da Terra,» lembrou já no declinar da vida, «embarcámos no ronceiro “pouca-terra” da linha do Dão, tão a carácter da morosidade provincial que os penedos à margem da via, as casas, os campanários de gargalo alçado ao longe por cima do arvoredo, e os camponeses espalhados pelos campos, têm tempo de se perfilar e reperfilar, e ele só se desloca, dir-se-ia, para que vejam bem que vai de abalada para longes terras.»

Esta calma transpareceu em nós, os ciclistas que se apresentaram nos fornos do Patrocinador às oito da manhã, enfiaram as bicicletas no furgão do Peninha e se lançaram ao caminho a partir da estação de Santa Comba Dão. Aliás, tentei captá-la com uma câmara instalada no guiador. Estando, porém, a usá-la pela primeira vez, fui atraiçoado pelo temporizador, que a desliga em três minutos. Ficaram as experiências no cais, obtidas pelo Informático Ferroviário. Até Viseu, a viagem só foi interrompida pela necessidade de despir as casacas em segurança. Isso não significa que não se pusesse o pé no chão. O Periglicófilo dá-se mal com as barreiras que interrompem a ciclovia nos cruzamentos. Diz ele que prefere pôr um pé no chão do que as duas mãos. Está explicado o título.

Quem se der ao trabalho de ler a narração da viagem feita há um ano, verifica que decidimos, por unanimidade, abandonar a o restaurante do papagaio. Passámos por ele, descemos a ladeira, recusámos os preços de outro restaurante, subimos ao centro histórico e aqui nos entregámos a um almoço que foi de bife de vaca para quase todos e de bacalhau com grão para o Periglicófilo. Decidimos realizar uma fotografia colectiva aos pés de Viriato, na qual estou pasmado, o Paulinho intrigado, o Peninha e o Físico expectantes, o Informático Ferroviário tranquilo e o Periglicófilo sorridente e certo a premir o botão do obturador. Viriato, coitado, está mais sofredor do que combativo.


Para abreviar, devo dizer que descemos placidamente até Figueiró, onde tomámos café, como documenta outra fotografia. A partir daqui, com o sol resplandecendo à nossa frente, fomos aumentando a velocidade e eu, que já me afligira a passar o túnel na mais completa escuridão, sem medir a distância às paredes, comecei a ver mal as barreiras. Acho que os colegas se afligiram. Uma vez, assistindo, incrédulos, ao meu galope para uma barreira amarela, e sem tração traseira que me permitisse saltar sobre ela, gritaram-me. Foi o Vendedor. Fez bem. Em vez de um pé no chão, ou mesmo das duas mãos, teria conseguido uma coisa mais importante e memorável. Desisti de seguir na frente, onde aliás quase nunca estive. Deixei isso para os amigos, que escolheram os últimos quilómetros para acelerar e gastar as energias remanescentes. É sempre assim.

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião