Em Portugal, o roubo de achados arqueológicos tornou-se um crime banalizado. Há muito que deixámos de proteger com seriedade o que nos define como povo. Entre a indiferença e a omissão, o passado vai-se perdendo — à pá, à picareta, ao som discreto de detectores de metais manuseados por saqueadores de ocasião ou traficantes organizados.
O que aconteceu no Castelo de Noudar, em Barrancos, é mais do que vandalismo. É um aviso. Num dos mais isolados e belos testemunhos do Portugal medieval, foram identificados buracos cavados com ferramentas clandestinas e vestígios de remoção de objetos arqueológicos. Sabemos que desapareceram moedas, cerâmicas, fragmentos de um tempo que ninguém voltará a estudar. O Estado nada fez. E o silêncio é a segunda agressão.
Mas Noudar é apenas um nome numa lista que cresce. No Castro de Sabroso, em Guimarães, o saque repetiu-se. Grupos com detectores de metais vandalizaram estruturas da Idade do Ferro, deixaram valas abertas e retiraram cerâmicas.
Na Torre Velha I, em Serpa, o que restava de uma villa romana foi parcialmente destruído por uma retroescavadora — a ignorância matou aquilo que a arqueologia ainda não tinha conseguido proteger.
Ao largo de Faro, uma empresa estrangeira extraiu ilegalmente moedas da nau espanhola Nuestra Señora de las Mercedes, levando para fora de águas portuguesas um espólio histórico que devia ser nosso.
E em 2009, a Polícia Judiciária recuperou no estrangeiro bustos, peças litúrgicas e objetos sacros roubados em vários pontos do país, provando que há um mercado negro ativo e impune para o nosso património.
A Direção-Geral do Património Cultural não tem meios para agir. As autarquias, na sua maioria, não têm técnicos nem formação para identificar, muito menos proteger, os sítios em risco. A GNR pouco pode fazer quando os alertas chegam tarde e os agressores já partiram com o espólio. E no meio disto tudo, a memória coletiva vai-se desfazendo como pó antigo em mãos irresponsáveis.
A quem pertence o passado? A todos nós. E se é nosso, então exige-se que o Estado o trate como um bem comum, não como uma nota de rodapé nos orçamentos culturais.
É por isso que defendo a criação urgente de um “Plano nacional de combate ao saque de achados arqueológicos e património“, com medidas concretas:
Fiscalização reforçada com drones e forças policiais em sítios vulneráveis;
Mapeamento nacional dos locais arqueológicos em risco, com sinalização visível no terreno;
Campanhas de sensibilização junto das populações, para que cada cidadão se torne um vigilante da sua própria herança;
Revisão da lei, criminalizando com firmeza o uso não autorizado de detectores de metais e o tráfico de bens culturais;
Cooperação internacional, para travar a exportação clandestina de artefactos e recuperar o que já foi levado.
A história de um país não se resume ao que está nos livros. Vive no solo, nos vestígios, nos fragmentos que esperam por quem os saiba ler. Quando esses fragmentos são roubados, roubam-nos também o direito de compreender quem fomos. E sem esse direito, não há futuro que se construa com raízes firmes.
Noudar foi saqueado. Mas e o que dizer de nós? Ficaremos imóveis, a ver a História a fugir-nos por entre os dedos?
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor