A grave crise da Igreja em Portugal

O escândalo que ataca a diocese de Lisboa não se exprime só pelos casos concretos, pela dramática situação em que crianças e famílias se encontraram e encontram. Este afirma-se por ser nesta diocese que se elege um cardeal filósofo e teólogo reconhecido que, por dever e por formação, não poderia ter cedido um centímetro nas suas obrigações.

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  • 21:38 | Quinta-feira, 11 de Agosto de 2022
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Em maio de 2010, aquando da visita de Bento XVI ao nosso país, escrevemos neste mesmo jornal uma análise crítica da Igreja Católica em Portugal. Muito censurada, nas semanas seguintes, a radiografia assentava em três universos relevantes das suas existência e prática.

O primeiro, era o que se antecipava em clara visão – um afastamento rápido e aparentemente irreversível dos católicos praticantes; o segundo, o que entrava pela estrutura da Igreja, em especial no retrato que se previa com substituição dos bispos em diferentes dioceses; e o terceiro, o que obrigava a uma profunda reforma da formação do clero perante a nova realidade comunicacional, a vida das comunidades e a solidão dos crentes.

Se nesse início de década havia muitas razões de preocupação, o tempo de hoje revela-nos uma Igreja em falência pública, mesmo que acreditemos que uma instituição com milénios é sempre sábia e contém em si as ferramentas para superar quase todas as crises.

As questões dos abusos na Igreja, tema das últimas semanas, não são de hoje. Há literatura, da boa, que nos foi trazendo o sofrimento de crianças, jovens e mulheres aos braços de levas de curas. Mas o que mudou, de forma tão rápida que as conferências episcopais desligadas do tempo e do modo em que a justiça hoje se afirma quase nem se aperceberam, foi a sociedade e a eliminação da sua tolerância a práticas antigas e hediondas.  E também mudaram a forma como se aceitam as responsabilidades perante o acontecido e os deveres que a cada bispo cumpre.


O escândalo que ataca a diocese de Lisboa não se exprime só pelos casos concretos, pela dramática situação em que crianças e famílias se encontraram e encontram. Este afirma-se por ser nesta diocese que se elege um cardeal filósofo e teólogo reconhecido, Chanceler da Universidade Católica, que, por dever e por formação, não poderia ter cedido um centímetro nas suas obrigações.

Há, porém, em D. Manuel Clemente uma soberba descomunal, uma desconsideração clássica que é típica dos príncipes da Igreja militantes do clericalismo. Sem a imponência de Raymond Burke, Clemente assume uma profunda elitização do culto e revela-se numa total ausência de empatia missionária.

Poderá parecer que esta análise é antipatia. De todo! Esta análise é resultado das muitas constatações que fomos verificando, ao longo das duas últimas décadas.

Em 2008 visitamos, enquanto membro do Governo, quase todas as dioceses e respetivos bispos. O tema era tão só o de pedir a ajuda do clero para que houvesse uma melhor informação e maior proteção das comunidades perante os incêndios florestais.

De todas essas conversas retivemos na memória as leituras de país de D. António Marto, D. António Francisco dos Santos, D. Francisco Alves e D. Jorge Ortiga. Ficamos com a forte convicção de que a Igreja em Portugal se confiava a dois grupos relevantes – um que se impunha pelo poder e outro que se impunha pela santidade, bondade e espírito de uma Igreja viva.

Restou muito claro que o que aí viria seriam tempestades, também pela ausência de afirmação de clérigos que pudessem estruturar um novo tempo. De todos os que foram elevados ao universo episcopal, nesta última década e meia, só D. António Azevedo, D. Nuno Brás, D. João Lavrador e D. Manuel Linda se esforçam, com dificuldade em certos tempos e temas, por compreender os novos ventos e se afirmam em soluções perante as emergências.

A Conferência Episcopal portuguesa tem hoje uma liderança que nos aparece preocupada com as obrigações da Igreja. Porém, a nomeação da Comissão Independente, que analisa os abusos das últimas décadas, parece ter saído em parto difícil e aparece-nos com dificuldades na relação com o episcopado. E é por isso que se estranha, mesmo sabendo-se do princípio da não dependência entre bispos, que D. José Ornelas nada tenha dito nos últimos dias.
Portugal viveu demasiado tempo o farisaísmo de D. Rino Passigato, o penúltimo Núncio Apostólico em Lisboa. A forma como foi sendo promovida a renovação das lideranças diocesanas não encontra paralelo em tempos passados. A permanente antipatia para com Monsenhor Rafael do Espírito Santo, a maldade no envio insular de D. João Lavrador, dizem muito da iniquidade que o antigo enviado do Papa revelava.

Porém, essa influência terá ficado cravada nas bitolas da nunciatura e pôde-se confirmar na escolha recente do novo Arcebispo de Braga. Uma diocese é um conjunto de comunidades com vivências seculares. Para que essas comunidades sejam obedientes ovelhas no prado do Senhor impõe-se uma leitura do que interessa na Igreja e na sociedade.

Não fez qualquer sentido fazer transitar o ultramontanismo para a diocese mais jovem e mais dinâmica do país. De Braga pode ir um Auxiliar para Bragança, de Bragança nunca pode vir um arcebispo para Braga.

E nos mesmos movimentos eclesiais, também não faz sentido trazer de Setúbal para Fátima alguém que deveria suceder em Lisboa, o centro de todos os mundos cristãos;como faria sentido fazer chegar ao Altar de Portugal alguém que, estando agora no Porto, compreende o sentido e o sentimento do povo crente que aporta a Fátima.

Os bispos portugueses vão saindo em fornadas de natureza aparelhística. E isso é péssimo passa cada uma das comunidades. Há muita Igreja que vive e vence a cada dia, que se revela forte. A menorização dos Padres José Nélio Pereira (Dehonianos), Miguel Almeida (Jesuítas), José Silva Nunes (Dominicanos) ou José Pinto Mendonça (Salesianos) demonstra uma Igreja despejada de alegria e de iniciativa.

Mesmo assim, a Igreja portuguesa vai-se confirmando em obreiros como D. Américo Aguiar, aguardado no Porto onde deixou marca, mas carece de bispos que se sujem nas ruas dos sem abrigo e se enlacem nas veredas dos esquecidos.  

Ao longo do último ano, cada uma das dioceses deveria ter estado a caminho de uma autoanálise. O esforço pedido pelo Papa para que os católicos se sentassem e pensassem em conjunto o futuro foi, porém, em Portugal, de uma pobreza incomum.

Jorge Wemans, no digital 7 Margens, foi à procura dos documentos finais da Diocese de Lisboa e, em 30 mil carateres, não encontrou nada de relevante. Para Wemans estamos em presença de futilidades que se exprimem numa desconfiança relativamente a Francisco.

Nesse texto de Lisboa nem uma palavra sobre os abusos na Igreja, tema em que o bispo de Roma tem colocado todas as forças. E é por isso que se nega bondade a D. Manuel Clemente: o problema não foi um momento de desatenção como tentaram fazer passar, o problema é mesmo estrutural.

 

Wemans lamenta-se, e nós também, que a Igreja portuguesa nada tenha debatido sobre o celibato, sobre a ordenação das mulheres, sobre as práticas de assistencialismo social, sobre a excomunhão dos recasados, sobre o acolhimento das pessoas LGBT. E também lamenta a total incapacidade para implicar os leigos num tempo em que a Laudato si’ e a Fratelli Tutti se fazem marca para além das paredes vaticanas.

Em suma, como Aura Miguel escreveu recentemente, “há uma surdez interior pior do que a física” que só se vence se houver “coragem de sair de si”.

Francisco virá a Portugal em 2023. Pode vir com uma Igreja transformada, mobilizada, apta; ou pode vir com algálias em fila concedentes de uma velha sombra de poder. Compete ao Vaticano decidir-se. Mas não seria bom que, num momento em que o Papa descesse para acolher um milhão de jovens, ecoasse pelo mundo o grito de todos os que foram abusados e a quem devemos respeito.

 

(Fotos DR)

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Publicado em Opinião