A Beira Alta – História de um Assassinato

A substituição da designação Beira Alta pelo rótulo Viseu Dão Lafões é assim lida como um acto de violência, apagando uma marca profunda de pertença e de história. O que está em causa é mais do que um nome: é a memória de um povo, a sua voz no tempo, o sentido de lugar que liga o presente ao passado.

Tópico(s) Artigo

  • 18:38 | Segunda-feira, 30 de Junho de 2025
  • Ler em 3 minutos

A maravilhosa e admirável Beira Alta. Região que se pode demarcar e definir pelos os seus povos, usos, costumes e tradições. Bem mais que uma simples terminologia, envolve toda uma idiossincrasia, uma memória colectiva, identidade cultural, legitimidade histórica e representatividade simbólica.

A Beira Alta enquanto entidade histórico e enquanto região tradicional, possui um carácter etiológico e etnológico, construído ao longo de séculos de história e vivências, desde imemoráveis tempos medievais. Tal legado inclui toponímia ancestral, rituais, festas e saberes populares, sotaques e expressões linguísticas específicas, arquitectura vernácula, e narrativas de pertença, resistência e sobrevivência.

Factores contemporâneas de gestão territorial motivadas por critérios meramente administrativos, estatísticos ou (ainda pior) de mero branding têm vindo gradualmente a substituir a sua designação por Viseu Dão Lafões, no que se pode ser entendido como um autêntico, vil e desprezível assassinato de carácter identitário.

Viseu Dão Lafões não passa de uma criação tecnocrática que surge no contexto das reformas administrativas e regionais pós 25 de Abril, e mais intensamente com os modelos de comunidades intermunicipais (CIMs) e as divisões estatísticas da União Europeia (NUTS). Trata-se, portanto, de uma mera categoria funcional, desenhada para favorecer acesso a fundos comunitários e promover o desenvolvimento entre municípios vizinhos.


Mas com tão rica personalidade e senhora de tão ímpares características a designação de Beira Alta não é apenas geográfica. É identitária e cultural. Pelo que pretender substituí-la por uma moderna nomenclatura tecnocrática pode ser visto como uma forma de cancelamento e de apagamento de uma identidade, de uma realidade viva.

O novo vocábulo ignora o lastro cultural e simbólico da região, e até chega a ser desprovido de densidade identitária para todos os concelhos abrangidos. É o resultado do que Michel Foucault designaria como o resultado de um saber-poder territorial. Porém esta nova designação não tem densidade histórica, uma vez que não emerge de práticas sociais nem culturais da população, dado ser uma imposição de cima para baixo, pensada meramente para facilitar a governança, a estatística e o marketing.

A atribuição de uma designação a uma região, os limites que lhe são impostos, os critérios pelos quais ela é representada, não são neutros. Eles reflectem uma relação de poder que estrutura a realidade social e simbólica, mas tal tem sempre como efeito o marginalizar de outras formas de pertença, tais como a tradição, o afecto, e a história, e é principalmente neste sentido que erra esta nova terminologia forçosa e artificial que nos querem impôr.

O resultado, esse recairá necessariamente numa fragilização da transmissão geracional do enorme e antiquíssimo marco identitário que é a Beira Alta.

Não se pode, também, deixar de ter em consideração a alienação das populações locais, que maioritariamente (e felizmente) não se reconhecem na nova designação.

Não se pretende nem se deseja com esta exposição uma rejeição da modernização administrativa, mas antes propôr que ela integre e respeite o legado identitário da região, uma vez que é possível manter a designação Beira Alta como categoria cultural e patrimonial, inclusive em marcas e em promoção regional, podendo manter-se o termo Viseu Dão Lafões em contextos estritamente técnico-administrativos sem pretensões de substituir o carácter histórico.

A substituição da designação Beira Alta pelo rótulo Viseu Dão Lafões é assim lida como um acto de violência, apagando uma marca profunda de pertença e de história. O que está em causa é mais do que um nome: é a memória de um povo, a sua voz no tempo, o sentido de lugar que liga o presente ao passado. Preservar o nome Beira Alta é, pois, um acto de resistência cultural e fidelidade à história, e à cidadania e identidade beiraltina.

Termino manifestando o meu apraz e encanto a esse verdadeiro néctar dos deuses que é o vinho do Dão e ao autêntico festim divinal que é a Vitela à Lafões, pérolas gastronómicas que tão bem nos representam e dignificam. Mas a Beira Alta é bastante mais que gastronomia…

 

Pedro Henrique Esteves

Psicólogo

 

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Opinião