“O incomodado retira-se!”

  Li uma notícia que tinha o seguinte título: “Passos sentiu-se gozado na última reunião com Costa”. Mais adiante acrescentando “houve uma clara falta de consideração de António Costa” e mais referindo “Passos Coelho sentiu-se incomodado”. Bom, estas picardias acontecem. Por vezes até, não por falta ou culpa de quem “pica” mas por má consciência […]

  • 12:13 | Domingo, 18 de Outubro de 2015
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Li uma notícia que tinha o seguinte título: “Passos sentiu-se gozado na última reunião com Costa”. Mais adiante acrescentando “houve uma clara falta de consideração de António Costa” e mais referindo “Passos Coelho sentiu-se incomodado”.
Bom, estas picardias acontecem. Por vezes até, não por falta ou culpa de quem “pica” mas por má consciência do “picado”. Isso nem está em causa. Na política há uma ilimitada profusão de casos onde a verbalidade chega a roçar o soez e a gestualidade o ofensivo. Quem não se lembra do gesto de Manuel Pinho, por exemplo, a Bernardino Soares?
A política é ancha de mordomias, ninguém o ignora. Por isso e pelas oportunidades que granjeia – o Compadre Zacarias diria “oportunismos” – os candidatos parecem a bicha da “ sopa dos pobres”. Por tal, natural é que haja alguns inconvenientes. E entre eles, de somenos importância, o de algum “contendor” se sentir incomodado na contenda. Legítima ou ilegitimamente. Dir-se-iam “ossos do ofício”. E serão muito poucos para o “filet mignon” deglutido.
 
Volta e meia faço um périplo pelas prateleiras da minha humílima biblioteca e pego neste ou naquele volume há muito lido, e por vezes até relido. Desta feita coube a vez aos tomos de ”As Farpas”, que como todos sabem, foram primicialmente publicadas a duas mãos, por Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, mensalmente, no ano das Conferências do Casino, tendo mais tarde, Eça feito a republicação dos seus escritos em “Uma Campanha Alegre” (1890) e Ramalho, entre 1887-90, em 11 volumes, com o título inicial.
Nelas se fez uma crítica irónica, mordaz e contundente à sociedade da época. Daí seu título. Os dois escritores tentavam ainda introduzir um novo conceito de jornalismo, o jornalismo de ideias e de crítica sócio-cultural. Pelos vistos não foram muito bem sucedidos…
Os volumes em meu poder têm história afectiva, estão todos assinados por meu avô Hilário, com a referência espácio-temporal de “Coimbra, 1927”.
O 4º tomo inicia-se com “História de uma vestimenta real – Parábola de introdução” e refere um conto oriental citado in “O conde de Lucanor”, de D. Juan Manuel, século XV.
Chamar-lhe-ei “O Incomodado Retira-se”, e diz assim:
 
Era um vez um bom rei da Arábia, pacato e divertido. Vivia em seu palácio sossegado da vida, desfrutando sabiamente as artes da paz. Punha papelotes nas barbas para que encaracolassem melhor. Olhava as moscas que passavam no ar com uma complacência magnânima. Atirava bolinhas de papel amarrotado aos seus antepassados, que estavam aos cantos das casas representados em porcelana. Fumava um narguilé, encruzado n’um divan, sentado em cima dos calcanhares, tendo os olhos cerrados e fazendo sair fumo pelo nariz.
O reino mostrava-se satisfeito e contente.
Quando algum súbdito patenteava o mínimo vislumbre de descontentamento com a marcha dos negócios públicos, o rei mandava carinhosamente que lh’o trouxessem, passava-lhe a mão pela cara fazendo-lhe um carinho, lançava-lhe docemente uma corda ao pescoço, e enforcava-o defronte do palácio.
Depois do que, o monarca aparecia, risonho e benévolo, a uma janela, e fazia ao país esta fala:
“Meus senhores e minhas senhoras! O incomodado retira-se. Se há por aí mais alguém que não esteja satisfeito com a marcha dos negócios, que o diga!”
Graças a esta política tão dedicadamente paternal e ao mesmo tempo tão simples, a satisfação era geral e o contentamento do povo não conhecia limites.
 
Não sei por qual relação de causa/efeito me detive nela, mas esta pequena rábula aqui parafraseada parece-me actual. E como sua Alteza – mas sem sua sapiência – ousamos aconselhar ao incomodado… que se retire!

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